HOMENAGEM AO PROF. PIO ABREU (EXCERTOS)

O Prof. Pio Abreu foi inequivocamente um dos mais ilustres psiquiatras da sua geração. Médico, psiquiatra, cientista, filósofo, humanista, escritor. Em boa hora, em 2023, foi homenageado no XVII Congresso Nacional de Psiquiatria, em Albufeira (…) Juntamente com o Prof. João Relvas e o Dr. Horácio Firmino, fiz um depoimento audiovisual sobre o homenageado, excertos que seriam editados e visualizados nessa mesma cerimónia. Em 2024 decidimos (eu e o Prof. Joaquim Cerejeira) convidá-lo para o prefácio da 2ª edição da obra “Psiquiatria Fundamental” lançada em Castelo de Vide, tendo o Prof. Pio Abreu estado presente. A sua intervenção ultrapassou o teor do prefácio e revestiu-se de uma abrangência filosófica sobre o que é ser-se psiquiatra no século XXI.

Nascido em Santarém em 1944, no ano da invasão da Normandia, José Luís Pio Abreu faleceria em Coimbra aos 18 de junho de 2025. Contava 81 anos.

Jovem estudante ribatejano, alojar-se-ia na República “Palácio da Loucura”, na Rua Antero de Quental, um bom prenúncio do que estava para vir e onde fortaleceria laços de amizade e cumplicidade com muitos companheiros por longos anos.

 Foi um dos protagonistas da crise académica de 1969, de entre os estudantes que pugnaram pela reintegração de professores e pela democratização do ensino superior. Sinalizado pela polícia política e castigado pela ditadura de Marcelo Caetano foi compulsivamente incorporado no exército e enviado para a guerra colonial na Guiné (…)

Regressado a Coimbra, faria os seus estudos psiquiátricos, o seu doutoramento em 1984 sobre Coreia de Huntington e a agregação em 1996 no domínio da Ansiedade e Dissociações. Em 2014, após a sua aposentação, tornar-se-ia membro do Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, um sonho antigo.

O Prof. Pio Abreu tinha um genuíno sentido de escola, aliás, muito apreciado. As suas áreas de interesse eram muito vastas. Iam da psicopatologia às psicoterapias, da comunicação em medicina à filosofia, até à neurofisiologia da espiritualidade… Nos últimos anos regressou à hipnoterapia e ficaria entusiasmado com a dessensibilização e reprocessamento por meio dos movimentos oculares.

Dos livros publicados, destacam-se: “Introdução à Psicopatologia Compreensiva” e “Elementos de Psicopatologia Explicativa”, duas obras complementares, maduramente pensadas e que lhe deram grande satisfação, com a chancela da Fundação Calouste Gulbenkian;  “O Modelo do Psicodrama Moreniano”, livro prático a partir da formação terapêutica realizada com o psicodramatista Alfredo Soeiro nos anos 80 e 90 (um português nascido em Castanheira de Pera, emigrado em criança para o Brasil); “Comunicação e Medicina”, colmatando uma grave e estranha lacuna do ensino médico em Portugal; “O Tempo Aprisionado”, ensaios não espiritualistas sobre o espírito humano, uma incursão a um dos seus filósofos de eleição, Henri Bergson, tal como Karl Jaspers e Karl Popper; o seu famoso “Como Tornar-se Doente Mental”, inicialmente publicado em Coimbra pela Quarteto; “Quem nos Faz como Somos”, uma viagem pela genética, signos e identidade; “O Bailado da Alma”, tido como uma dança  dinâmica em relação com o tempo; “Estranho Quotidiano”, coletânea de crónicas na imprensa; “A Queda dos Machos”, onde dá voz aos homens enquanto escreve às  mulheres e “Pequena História da Psiquiatria”, obra escrita tirando partido da clausura  imposta pelo COVID-19. Algumas destas obras tiveram divulgação no Brasil, Espanha e Itália (…)

Uma das minhas memórias de espanto de 1979, quando iniciei o internato num Pavilhão do Campus Hospitalar de Celas, nos Hospitais da Universidade de Coimbra, felizmente rebatizado de Clínica Psiquiátrica pelo Prof. Adriano Vaz Serra, foi conhecer o minúsculo gabinete (talvez 4 m2) onde o nosso homenageado trabalhava, no sótão, mal cabia uma pequena mesa e uma cadeira, com um postigo que dava para uma sala de aula, num improvisado mezanino (…) Ou seja, a um dos mais brilhantes psiquiatras que Portugal conheceu, tal bastava. Esse cantinho. A humildade dos sábios.

Recordo as discussões acaloradas de casos clínicos de doentes internados, demasiado tensas para colegas mais sensíveis, mas jamais jocosas ou satíricas, e que acabavam na tertúlia do café do bar do hospital, ao ar livre, já num clima distendido. Era um Mestre que muito estimávamos, porque sabíamos que a diversidade só enriquece o saber. Um psiquiatra que vai ao cinema, ao teatro, que sabe de música e de pintura, não está refém de nenhum modelo, muito menos do modelo biológico. Um homem de largos horizontes.

A montagem física do cenário para as terapias por psicodrama no serviço foi uma iniciativa louvável para o tempo. Com palco, bancos, almofadas e sistema de luzes. Uma certa intrepidez. Aliás, a sua ousadia nem sempre era bem entendida. Como uma vez, num contundente comentário no Teatro das Letras nos anos 80 perante uma centena de assistentes, no final da peça.

Teve ainda diversas intervenções políticas, mas sempre com o nobre intuito de solidariedade social. Poderá dizer-se, com toda a propriedade, que a sua consciência cívica e de cidadania foi exercida em plenitude. Os exemplos são muitos e públicos, nos jornais, na TV e nos livros (…) Assisti a muitos episódios singulares vivenciados pelo Prof. Pio Abreu. Desde as idas de bicicleta para o hospital (algo incomum para o tempo), tocar flauta com um paciente esquizofrénico, aluno de Medicina, elaborar ilustrações e desenhos para as suas aulas no tempo dos acetatos, os passeios inspiradores com o cão, o me ter chamado ao gabinete para observar movimentos coreicos de um paciente com Demência de Huntington ou hiperventilações com dissociações (…) Neste ponto há algo inesquecível. Ainda hoje recordo o nome da paciente. O Prof. Pio Abreu pediu-me para provocar uma dissociação, através da hiperventilação continuada, a uma doente internada e eis senão quando irrompeu um ataque epiléptico! Durante uns segundos fiquei atarantado. A histeroepilepsia existia! O grande tratadista espanhol Alonso Fernandèz tinha razão.

Quando comecei a substituir o Prof. Pio Abreu (inicialmente na Universidade dos Açores, ainda antes de assumir a regência da Cadeira de Psiquiatria), apercebi-me de quanto ele era admirado não só pelos alunos do ensino superior mas também pela Escola Secundária das Laranjeiras onde tinha proferido algumas conferências (…)

Uma vez sobreviveu a uma tentativa de esfaqueamento com uma faca de mato no tórax por um doente esquizofrénico devido à intervenção rápida e corajosa do enfermeiro João Raúl, um antigo jogador de basquetebol de quase 2 metros de altura. Eu vi.

Tive o privilégio de ler e criticar, a seu pedido, o texto do “best-seller” antes da entrega ao editor: “Como Tornar-se Doente Mental” (26ª Edição, em 2021, Prémio Città delle Rose 2006). Recordo-me bem do que lhe disse na altura: “A ideia é muito interessante, as pessoas vão entusiasmar-se, ler tudo de uma assentada, mas o último capítulo fecha o livro com chave de ouro, pois que teria que haver mesmo algo assim: “Como Não Ser Doente Mental”. Aliás, é precisamente o mesmo que penso vinte e cinco anos depois.

Em boa verdade se diga que a Faculdade de Medicina deixou-o sair discretamente. Não percebeu ou não quis perceber quem era esse pensador livre, uma figura maior da nossa psiquiatria. Um dos nossos melhores (…)

O reconhecimento pela intensa e empenhada colaboração com a Ordem dos Médicos foi premiada com a Ordem de Mérito em 2022 (…)

O Prof. Pio Abreu era um psiquiatra eclético: “Compreender a mente humana é um desafio científico, mas também um compromisso ético e espiritual” … “O psiquiatra deve ter conhecimento de neurologia, fisiologia, endocrinologia, mas também de antropologia e sociologia” (…)

Leiria, 16 de setembro de 2025