CRENÇAS E SUPERSTIÇÕES, MEMÓRIAS BREVES

Uma atitude reflexiva sobre o mundo da superstição e das atribuições culturais para a doença mental creio ser sábia, na medida em que o compreender e o explicar se tornam mais facilitadores da comunicação. De facto, se a relação médico-doente deverá ser de abertura e calor humano, então não é desejável que o léxico de secretismos ou regionalismos que integram formulações mágicas do doente impeçam o desenrolar do ato médico, por ignorância do clínico. Do mesmo modo, não é por se negar a existência de ladainhas, poções, amuletos, que a psicoterapia se engrandece. Aliás, seria útil que o positivismo científico procurasse estudar corretamente tais fenómenos, sem sobranceria, na esteira de Espinosa: “Sempre que estudo os problemas humanos, tenho procurado, cuidadosamente, não escarnecer, lamentar ou condenar, mas apenas compreender”.

1. Nos princípios da minha atividade clínica, finais dos anos 70, num dia quente e luminoso de Verão, quando o sol já quase se deitava além do horizonte do farol da Nazaré, recebi um pedido insistente para uma consulta domiciliária. O caminho era sinuoso e de mau piso na direção daquele monte que se destacava na paisagem das cenouras e dos brócolos. Finalmente, quando já me inquietava, surgiu ao cimo o casario branco que justificava o nome de Casal para o lugar procurado. Avancei para um pátio amplo e bati as palmas à mexicana. Canteiros floridos embelezavam os muros. Um cão pachorrento nem ladrou nem saudou com a cauda. Um odor perfumado parecia querer premiar-me pela canseira. A casa era humilde, de piso térreo. O barulho do Citroen Diane ou as palmas sonoras anunciaram a minha chegada e ali estava à soleira um homem simples, magro, de baixa estatura, de olhos vivíssimos, sorridente. Cortinas, oratórios, velas, santinhos, objetos estranhos e indefiníveis ao meu entendimento baloiçavam à vista. À Oriente. No leito, com ar macilento e doentio, a mulher do famoso bruxo, o Tio Franquelim, tido com poderes para além dos médicos, que talha, benze, purifica ou amarra, ali se quedava. À saída, já a minha mente navegava num mar cão de mil perguntas – depois de ter arriscado um diagnóstico para tanto amarelo cor de latão com recomendação de internamento hospitalar e prognóstico reservado – e não resistindo mais ao fervilhar questionei-o, numa pincelada de malícia, acerca das suas artes e do motivo da consulta. A resposta firme não tardou, com fúria no olhar e assertividade na sentença: “Senhor doutor, esta é uma doença de médico”! Engoli em seco.

2. Um outro episódio que me alertou para o mundo das crenças e das superstições ocorreu quando tive a possibilidade de estudar e seguir uma curandeira da região de Santarém, a Dona Justina, nos anos 80. A história começa quando no coro da Igreja da aldeia a sua voz sobressaía desmedida, como um trovão, acima de todas as outras. O padre da terra já andava apoquentado sobre a possível ocorrência de um episódio público mais excêntrico. E foi isso que aconteceu. De repente, o braço direito da curandeira ficara esticado com o terço pendurado após a evocação do Cristo redentor. Em estátua. No final da missa sentou-se no altar para logo de seguida percorrer, em estilo de marcha militar, ora ajoelhando ora fazendo continência, as Capelas da Senhora da Saúde, S. Sebastião, Senhora de Fátima e Sagrado Coração de Jesus. Coisa nunca vista. Uma curiosidade advinha do facto de ser do conhecimento geral que esta curandeira recebia clientes na busca de consolo espiritual. Era tida como especialista em passes com o crucifixo, rezas, defumadouros e ladainhas, como a de cortar o cobrão, doença de pele cientificamente conhecida como zona ou herpes zoster, que em geral passa ao fim de 10 dias, faça-se o que fizer:
“Eu te corto coração e corpo / E rabo e cabeça / Aranhão e aranhiço / Centopeia e centopão / Em louvor do Sr. São Bento / Corte todo bicho peçonhento / P’ra trás não andarás / E p’ra diante não adiantarás”.
Tive oportunidade de conhecer o marido desta curandeira, um homem à volta dos 50 anos, trabalhador de sol a sol, de baixa instrução, mas bem-humorado, que um dia me procurou triste e semizangado porque os remédios prescritos tinham limitado seriamente os poderes da mulher e que isso gerara desconforto na família e estranheza na comunidade perante a menor eficácia dos benefícios esperados. Fiquei num dilema a meio da ponte: sou médico psiquiatra ou antropólogo? Talvez pudesse ser tudo um pouco. Alterei o esquema terapêutico. Amaciei os sintomas. Na consulta seguinte, fui premiado com uma broa e um garrafão de azeite. E eu dormi melhor.

3. Também o circuito, em calvário, perpetrado por um jovem de 20 anos, na década de 90, duma pequena aldeia da Cova da Beira, com ataques nervosos, que tive ocasião de observar, é paradigmático: em menos de dois meses foi observado por sete clínicos gerais, dois cardiologistas, três psiquiatras e sete curandeiros! Acabaria por ser internado em dois hospitais psiquiátricos da Região Centro, sendo curioso relatar que da primeira vez se ausentou da enfermaria por umas horas a fim de consultar uma curandeira! Desde calmantes, tónicos, purgantes, óleo de fígado de bacalhau, tisanas, rezas, esmolas, defumadoiros, por tudo passou, mas quaisquer explicações científicas esbarravam sucessivamente no seu sistema de crenças e da sua família que tal estimulava.
Constatou-se que em termos comunicacionais diversos médicos usaram modelos de autoridade ultrapassados ou impuseram equívocos silêncios no encontro da relação entre dois seres humanos enquanto outros mostraram dificuldades em explicar, em linguagem entendível, as razões de tais ataques nervosos. Este tipo de enquadramento relacional é frequente, sem que se esboce o início de qualquer aliança terapêutica e logo com a pressão imediata e pressionante para a realização de exames médicos da parte do paciente e familiares…

4. Ainda na década de 90, conheci a D. Rosa, uma mulher na casa dos 40 anos, da região de Leiria, uma curandeira de dotes especiais de mediunidade, como diziam, que incarnava os espíritos de defuntos por ter a “morada aberta”. Vinha gente de todo o lado. Em certas alturas obrigava-se a um agendamento. Os seus desmaios e gritos estridentes, tal como algumas paralisias temporárias, sempre intrigaram familiares e vizinhos, mas simultaneamente impunham certos receios e secretismos. As suas artes cansavam-na pela exigência da procura. O seu guia espiritual, muito zeloso dos aspetos financeiros, ou seja, das ofertas dos clientes, transmitiu-me alguma preocupação pela falta de rendimento do trabalho. A médium já não entrava em transe tão facilmente como outrora e o seu dom de ventriloquia parecia também minado. Ela própria confessou-me preocupações familiares e dissabores que lhe perturbavam o desempenho do benefício para com terceiros. A mulher, afinal, não era de ferro, nem totipotente. Convenci a curandeira a um curto internamento para melhor estudo do caso. Lá obtive as respostas científicas suspeitadas, mas a paciente desapareceu e continuou o seu mister. À minha curiosidade respondeu com o afastamento. E o guia espiritual deve ter aberto uma garrafa de vinho! “Abelhudo, o raio do médico.”

5. Também nos anos 90, foi internada a D. Gertrudes, uma senhora de 60 anos, de forte religiosidade e culto de penitências, oriunda do distrito de Leiria. A senhora, como de costume, já tinha percorrido diversos circuitos médicos e não médicos, mas nada parecia aliviar o sofrimento. As queixas eram múltiplas de cima a baixo. Que continham algumas bizarrias comportamentais, lá isso é verdade. Desde a bola na garganta aos formigueiros ou mesmo as visões. Até à noite, na cama, toques suaves no corpo vindos sabe-se lá de onde. Acabaria por me sussurrar que estava possuída pelo demónio e que se encontrava no local errado. “A minha doença não é destas casas. Quero um padre. Só um exorcismo me salva”. Um padre conhecido, sabedor destas matérias espúrias, informou-me que a paciente, obviamente não identificada, não poderia estar possessa porquanto faltavam critérios, entre eles a inexistência de intensas convulsões, força sobre-humana e o não falar línguas desconhecidas. Não obstante, mais tarde, após a alta, vim a saber, por uma amiga, que terá havido um simulacro de exorcismo com imposição das mãos, sinal da cruz, aspersão de água benta, passagem da estola pelo corpo e algumas palavras. Tanto quanto apurei, a paciente terá melhorado rapidamente.

6. Já neste século XXI, confrontei-me com uma situação que ouvira falar, principalmente no Norte: a dinastia de bruxas. Ou seja, perante a morte da curandeira da aldeia quem melhor do que a filha ou a neta para continuar as artes do benefício tão apreciadas? Assim, a D. Felisbela, de 40 anos, da região de Aveiro, seguiu as pisadas da avó. Herdou quase todos os dons, ainda que tenha revelado que é mais lenta na incorporação dos espíritos. Não se compara à avó. Mesmo assim as gentes sofridas, em luto, almejam os seus serviços. Até Centros Espíritas referem que ter a “morada aberta” é um destino de ajudar as almas. Uma sina. E insistem para que participe nas correntes do pensamento. O marido torce o nariz e não entende tais incumbências fora de casa. Entretanto, a curandeira continuará a senda de médico em médico…

Num trabalho com outros colegas, no início da década de 90, publicado numa Revista da Ordem dos Médicos, num universo de 112 doentes confirmámos aquilo que já se percebia acerca dos doentes do foro psiquiátrico:

29% atribuíam a sua doença a crenças supersticiosas, sendo imputado, em mais de metade destes casos, ao mau-olhado ou ao mal de inveja; 52% tinham consultado curandeiros; e 24% usavam objetos protetores, equivalentes a talismãs ou amuletos. Estas vivências centralizam a questão ancestral de que existem outras curas para além da medicina científica e que tal concepção está fortemente arreigada na nossa cultura. A medicina atribui, pois, as doenças a causas conhecidas ou suscetíveis de o virem a ser no futuro, mas certos indivíduos atribuem a doença ao sobrenatural e é este sistema de crenças que é determinante para o tipo de procura de ajuda. Leis da causalidade estabelecem que a capacidade de produzir certos efeitos faz passar o fenómeno de religioso a científico, como aconteceu com as tribos americanas que no passado dançavam aos seus deuses pedindo chuva e deixaram de o fazer depois da utilização de furos artesianos.

Bronislaw Malinowski e Claude Lévy-Strauss foram alguns dos antropólogos que se debruçaram sobre as relações entre as ciências proféticas e o poder dos ritos e das palavras dos curandeiros. Por isso, o médico, em certa medida, poderá ser interpretado como o feiticeiro dotado do poder de nomear o mal, passando-o para o domínio da palavra, ou seja, do mundo conhecido. Muitos dos curandeiros foram ou são doentes psiquiátricos ou neurológicos, que acreditam nos seus próprios poderes porque a cultura assim entende e reverbera. O seu rito vocal é muito poderoso, mais quando ciciado e repetido, ou então hiperdramatizado em público. Será também mais demolidor se acompanhado da capacidade de entrar em transe e fazer uso da ventriloquia pelo continuar do arfar em pleno ritual. Estes seres qualificados para lidar com o sobrenatural emergem em todas as culturas adotando técnicas de benefício que se opõem à bruxaria da magia negra do malefício. Seria, então, aquela capacidade que equivaleria o curandeiro à pitonisa grega, permitindo ao paciente interpretar livremente as falas, donde os sintomas histéricos mais espetaculares poderem ser postos ao serviço da comunidade. O que ainda hoje acontece, por exemplo, em círculos religiosos discretos.

As fronteiras entre o mágico e o religioso são interpenetráveis. O esconjuro e a oração têm similitudes, o que é particularmente notado nos exorcismos praticados pela Igreja católica. Provavelmente, tanto a magia como a religião tornaram o mundo mais capaz de iludir amarguras e é precisamente numa tentativa de camuflar o sofrimento que aparecem talismãs e amuletos, desde sempre companheiros do Homem. Dentes, conchas, sílex, pedras preciosas, metais, plantas, colares de contas, olhos, animais, cornos, ferraduras, pulseiras, figas, falos, signo-saimão, cruzes, argolas, são exemplos de objetos protetores ancestrais. Recorde-se, por exemplo, que no Talmude, Salomão possuía um anel com poderes sobrenaturais, pelo qual Asmodeu conseguiu talhar as pedras do Templo e que a cidade celeste do Apocalipse (XXI, 18) estava protegida por muralhas que continham 12 pedras preciosas: jaspe, safira, calcedónia, esmeralda, sardónica, sárdio, crisólito, berilo, topázio, crisópraso, jacinto e ametista.

De outro modo, analogamente, a importância do toque está bem visível no Novo Testamento (Tiago, V, 14): “Está alguém doente entre vós? Ele que chame os dignatários da Igreja e que os deixe orar por ele e ungi-lo com óleo em nome do Senhor”. A força mágica do tocar evidencia-se também no notável filme ET, quando o extraterrestre cura a criança com o toque do seu dedo, subitamente luminoso, numa despedida de infinita ternura.

A expressão habitual “tens que sair” ou “vai ver da tua vida” significa que que para grandes males tidos como sobrenaturais só algo sobrenatural poderá ser eficaz. Lembro-me de uma mãe apavorada, nos anos 80, depois de ter assistido ao primeiro ataque epilético com intensas convulsões tónico-clónicas da sua filha de 10 anos, me ter perguntado mais tarde, depois de passar pela farmácia, se era com aqueles comprimidos de menos de 100 escudos que se iria resolver um mal assim tão grande! Isto denota uma crença habitual de que doença grave requer meios dispendiosos e sofisticados, talvez fora do alcance do médico. E se a viagem em busca da cura for longínqua, por caminhos tortuosos, as expetativas da cura seguramente que se tornam mais exponenciais. O aparato do encontro, as cores, os paramentos, a exuberância e a excentricidade dos ritos completariam o clima propício à melhoria.