“Quero morrer, quem me salva?”: O suicídio primaveril

A Primavera acordou. Eis a pujança e a alegria. Borboletas esvoaçam, flores irrompem, pássaros bicam. Ribeiros tocam uma musicalidade de cristal. Mas por um estranho contraste há pessoas melancólicas em redor. Já não vão à janela nem passeiam o cão. Mal falam. Olhar abismado, no infinito. Ensimesmadas. Horas na cama e sempre a mesma roupa. Espelho arredio da sentida fealdade. Nem pente ou escova. Nem água de banho para higiene ou alindamentos. Álcool para tentar adormecer, mas noites em claro. Canecas de água cafezada. Pão com pão. O tempo vagaroso. Cinzentas ou roxas por dentro. Tudo isto, para o qual as palavras rareiam, vem das profundezas, da mente e do cérebro. Que solitária languidez!

Talvez a inveja dessa oposição seja dilacerante e tenebrosa. Mais do que pica, esgravata e escarafuncha no peito. Lá fora, no campo, a euforia. Cá dentro, em casa, a tristeza. Uma dor indefinível e intolerável. “Que coisa me está a acontecer?” Dizem os atrevidos simplistas do que é complexo, os mecânicos do cérebro, que há atiçadores fugidios: “A falta de serotonina não deixa dormir e a escassez de dopamina tira o prazer”. Tão só assim. Daí a receita à imprensa cor-de-rosa: “Apanha sol e caminha”. “Mas onde é que está esse botão da máquina da vontade para eu carregar e tudo transformar?”. “Será que alguém me acende a luz para eu ver a escada de corda que me possa trazer de volta à tona do poço?”. Então, à pergunta do desgraçado “Quero morrer, quem me salva?” percebe-se que a resposta imediata não deverá ser “Porquê?” mas sim “Para quê?”. É aqui que entram as artes comunicacionais. Uma sabedoria. Quase um dom.

A maior parte das pessoas com ideias de suicídio, esse negrume que tenta ludibriar o instinto de sobrevivência, refere o desejo de “fugir”, “desaparecer”, “desligar”… Excepcionalmente abordam a possibilidade de uma qualquer “aniquilação”, só mesmo desde que careçam de extremar o jogo do fio da navalha no sentido de ansiar por uma validação do sofrimento quando anteriormente ninguém terá compreendido o seu lancinante pedido de ajuda. Já foi dito e redito: O suicídio não surge do vazio. Há um processo, um trilho turbulento e efervescente, uma história para contar com hesitações de uma ambivalência oscilante em crises que se podem repetir. A insatisfação, a incompletude, o desamparo, a raiva e a culpa, exemplificam alguns dos sentimentos explícitos ou metafóricos. A persistência de pensamentos automáticos negativos fragilizam e empurram, às vezes subtilmente, o indivíduo para a armadilha de um mar encapelado e perigoso. Não tardará o grito do náufrago arfante e o esbracejar por uma bóia. Na verdade, as pessoas também falam pelo corpo. As gentes inábeis para pôr na palavra a sua intensa dor psicológica, pela inalcançável magia dos poetas que assim purgam as paixões, viram-se agora para os gestos e atitudes. Talvez, finalmente, alguém consiga ver ou adivinhar a ferida que sangra.

Sabemos hoje que 90% dos suicidas padeciam de uma doença psiquiátrica. A mais frequente é inequivocamente a Depressão Major e outros quadros aparentados como a Doença Bipolar. Também a Esquizofrenia (uma doença da realidade), Perturbação de Stress Pós-Traumático (uma doença da ansiedade-humor), Perturbação da Personalidade (uma doença do temperamento e do carácter), Alcoolismo e “Drogas” (desde cannabis sativa a substâncias opióides ou cocaína-like) poderão estar implicados na etiopatogénese do suicídio. Assaz comum é a associação de patologias, isto é, comorbilidades, mesmo fora da área da Psiquiatria, como é o caso do cancro ou de enfermidades incapacitantes.

Em Portugal ocorrem mais suicídios entre Maio e Agosto, principalmente no Alentejo ou no Pinhal Interior, ao sul do paralelo do Cabo Mondego. É um fenómeno mais rural do que urbano. Outros factores de risco incluem ser do género masculino, ter mais de 50 anos, ser divorciado ou viúvo, estar desempregado, não ser religioso, padecer de doença crónica e com antecedentes de tentativas de suicídio, reportadas ao próprio ou a familiares. Aqui observa-se a confluência de duas poderosas forças, as genéticas e a dos modelos culturais dessa região. O risco de mimetismo ou imitação. O chamado Efeito Werther. Os métodos suicidas mais utilizados são o enforcamento (aproximadamente metade da casuística), arma de fogo (tiro na cabeça ou no tórax), ingestão em sobredosagem de medicamentos (psicotrópicos, analgésicos, etc.) ou de tóxicos (pesticidas ou monóxido de carbono), com potencial de paragem cardio-respiratória, precipitação de sítios altos, afogamento, corte de artérias, trucidação por comboio ou atropelamento intencional na estrada. As taxas anuais de suicídio têm permanecido à volta de 10, ou seja, 10 suicídios por 100 mil habitantes, valores abaixo da média mundial. Persiste no nosso país, todavia, o problema estatístico de um excesso de mortes indeterminadas ou equívocas, dentro do panorama europeu, devido à dificuldade em destrinçar o que é acidente do que é suicídio em casos dúbios, com repercussões óbvias sobre o rigor dos dados epidemiológicos e que dão azo a uma diversidade de especulações. Como se compreenderá, o problema da subdeclaração do suicídio ultrapassa as nossas fronteiras. É universal.

Neste período histórico de enormes sobressaltos de saúde pública, económicos e sociais que estamos a atravessar, cujos efeitos nefastos ainda poderemos ter que conviver durante algum tempo, importa recordar o Plano Nacional de Prevenção do Suicídio (2013) e ter em linha de conta os seus grandes propósitos. Deste modo, deveriam ser alocados recursos humanos e financeiros com vista a trabalho a montante da perturbadora desesperança e do desespero final. Naturalmente que o desafio não se restringe apenas à esfera da Psiquiatria. É de todos. Da Sociedade.

Em remate, atentem num mito tristemente reverberado: “Quem se quer suicidar, não avisa!”. É falso. A maior parte dos suicidas comunicou de alguma maneira a familiares ou amigos essa intenção, ainda que de forma indirecta ou simbólica. Portanto, não se esqueçam: Valorizem todos os sinais. Não deixem nada para trás. Escutem. Acolham. Vinculem. Não hostilizem. Criem proximidade e aconcheguem. Lutem pela inclusão. Sugiram alternativas. Insistam que a “nuvem negra” irá passar. Metam pão em cima da mesa mas não os deixem sozinhos.

“Quero morrer, quem me salva?”. De Maio a Agosto: épocas conturbadas. Mas uma oportunidade para o exercício da solidariedade e da compaixão. Certamente do melhor que há em nós.

Carlos Braz Saraiva

In jornal “Público”, 27 maio 2021, p. 19