O LUTO E A PANDEMIA
Publicado no blog em Abr 11, 2021A morte faz parte da vida. Contudo, quase nos esquecemos dessa inevitabilidade. A sociedade contemporânea estimula o prazer e enaltece o belo. Existe uma atração obsessiva pelo espelho e pela avidez de atenção. Quando transposta para o meio social, o instinto de plateia torna-se mais grandioso, por vezes sob uma teatralização exuberante e histriónica. Se tal aparência vier ornamentada por crenças de poder, então, persistirá a ilusão da omnipotência. Uma infantilização. Uma armadilha de quem não percebeu os malefícios dos excessos de hedonismo, narcisismo ou egocentrismo. Um veneno.
O homem moderno não está preparado para aceitar fracassos. Só quer ver as pétalas das rosas, não os espinhos. Não compreende que se anseia pelo arco-íris tem que estar preparado para a chuva. Conheci muitos indivíduos que perante um desaire banal do quotidiano se acharam miseráveis ou esmagados, pessoas que se interpretaram como atingidas no peito por uma seta, equivalente a uma derrota pessoal. Sussurrando mesmo que a sua dignidade fora severamente amputada. Ou seja, confundindo a árvore com a floresta, chegaram ao ponto de se imaginarem como protagonistas da sua própria morte. Perdidos num labirinto de angústia e sofrimento, não conseguiam perspetivar outros horizontes, isto é, assimilar sequer que no amanhã o sol voltaria a nascer e que a “nuvem negra” desapareceria… Daí que lidar com a dor seja hoje diferente de outrora. Há menos estoicismo.
O confronto com a realidade da morte tem o condão de fornecer uma maior valorização do que é a vida, pelo contraste bipolar da díade. Há “nasceres e morreres”, diz o povo. Sempre existiu um período de tempo para a expressão da dor da perda. Até ao século XX, iniciava-se logo na fase da doença terminal, exposta pelo paciente no seio da família, à qual se seguia, após a morte, o velório de dia e noite, o choro das carpideiras, os gritos, os abraços, as rezas, a missa e o enterro com a encomendação da alma. O repicar dos sinos. Depois, o nojo. O recato. O lamento. Novamente as missas. As idas ao cemitério e à igreja. A passagem do tempo. Aqui, a sabedoria popular sinalizava meses ou anos de preto, conforme o parentesco do falecido. Se afastado, se próximo. No traje, gravata, fumo no casaco, véu nas senhoras, até em tarjas nos envelopes de cartas, a exibição desse pesar não deixava dúvidas à comunidade. O preto do corpo e a roxidão da alma. O trabalho de luto far-se-ia com ritmos e atitudes nem sempre entendíveis. Cada pessoa carregaria a sua cruz. Nas campas, com flores, velas ou lanternas de azeite. Em casa, com fotos, jarras e santinhos. O perseverar de memórias.
Além da dor da família, o morto oferecera uma dádiva de impacto. Permitiu a triangulação de uma certa paz entre familiares desavindos, esbatidas barreiras de zangas ou rivalidades. Uma magnanimidade. Ou seja, a morte e os seus ritos poderão ser unificadores e fortalecerem a unidade e a vinculação de sangue. A força do perdão e da concórdia através do falecido. Uma vigorosa generosidade.
A pandemia Covid-19 transtornou muita gente e veio pôr à prova o que é mais importante na sociedade e no mundo da política. Pares em antítese. O essencial e o acessório. O lutador e o parasita. O corajoso e o cobarde. Eis claramente a relevância do papel do Estado nas questões de Saúde Pública.
Na vertente da Psiquiatria, poder-se-á afirmar que grande parte dos doentes com patologias da ansiedade, exemplificadas em certas fobias, ataques de pânico, ansiedades generalizadas e obsessões-compulsões, viram agravados os seus estados clínicos, por vezes com manifestas dificuldades em manter um estilo de vida normal. Também o aumento dos quadros depressivos parece inequívoco, com os pacientes a reportar tristeza, insónia, dores, irritabilidade, sensações de desesperança ou mesmo desespero. Uma disfuncionalidade clara no dia-a-dia. Não surpreenderá, pois, o consumo excessivo de calmantes e antidepressivos. Ou até substâncias psicoativas, como as bebidas alcoólicas. Da intensidade de todos aqueles sintomas ocorrem turbulências emocionais e agudização de conflitos familiares latentes. Irrompem, então, o risco de rutura da coesão familiar e eventuais separações ou divórcios. Do ponto de vista dos proventos é um facto que muitas pessoas estão a passar por terríveis dificuldades económicas, aprendendo a sobreviver com a ajuda de familiares ou de instituições de apoio, para além do Estado. Um exercício de resiliência.
Já não bastando esta calamidade de Saúde Pública, não tem sido permitido aos enlutados chorar os seus mortos de acordo com a tradição. Contida ou condicionada foi a libertação das emoções. Para muitos, nem sequer foi possível o último adeus no caixão nem um velório ou cortejo fúnebre normais. Tudo isto em cenários estranhos e desoladores. Talvez um secretismo de pavor no cemitério ou no crematório. Algumas pessoas poderão vir a padecer no futuro de traumas psicológicos por insuficiência de choro ou cólera no local certo e no ambiente adequado. Quiçá, sentimentos de culpa pela tortura da obstinada e inquietante pergunta sobre se foi feito tudo o que havia a fazer. Claro que a evocação de memórias de modo a relembrar o morto é exequível mas não em função de uma cerimónia canónica de grande carga simbólica que ajudaria a reorganizar a identidade. Afinal, uma reconstrução, como essencial ao prosseguir da caminhada que é a vida. Tal inquietação ultrapassa o conforto que uma religiosidade intrínseca pudesse ser capaz de mitigar.
Ainda que se possam entender as cautelas inerentes à Saúde Pública, de acordo com o atual cenário pandémico, os nossos mortos mereceriam mais, tal como os vivos. Flexibilidade, inteligência e argúcia precisam-se, de forma a encontrar os equilíbrios certos para o horrível contexto. A Saúde Mental assim o exige.
Publicado no “Público”, 31.10.2020, p. 20