O suicídio e o risco de mimetismo na sociedade
Publicado no blog em Out 5, 20201. O Suicídio, Breves Notas
A morte faz parte da vida. Dito apenas assim poderá perturbar o Homem Contemporâneo, esfusiante de egocentrismo e hedonismo. Fala-se de viver e não de morrer. Fala-se de ter e não de perder. O tudo é bom, o nada é mau. Existir sim, mas só se houver paixão. Nada de dores, tédios ou vazios, nem que esses momentos pudessem oferecer um vislumbre de acalmia para a redescoberta da saída do labirinto da amargura. Ou seja, uma oportunidade da dimensão tempo para o pensar e não para o sentir. Todavia, a mensagem sempre propalada pela imprensa cor-de-rosa é “permanecer na crista da onda, no palco, nas luzes”. Com poder, beleza e proventos. Eis uma falácia perigosa.
Das linguagens do sofrimento e do desespero que mais afetam os humanos, o suicídio é seguramente um dos fenómenos mais intrigantes que logo sugere uma cascata de perguntas reveladora de um emaranhado de estranhezas na procura de infindáveis “porquês”. Na obra The Art of Suicide (2001), Ron B. Brown, professor da Universidade de Leeds, principalmente inspirado em Le Mythe de Sisyphe (1942) de Albert Camus, The Savage God (1971) de Alfred Alvarez e Histoire Du Suicide (1987) de Georges Minois, pérolas da suicidologia do século XX, refere que o suicídio se prepara no silêncio do coração, como se fosse o remate de uma obra de arte, um lampejo criador. Não espantaria tal força da natureza, esse grito das profundezas, porque do inconsciente brotariam as suas falas e emergiriam os seus comportamentos. Daí se perceber a existência de um trilho de um processo doentio onde correm sinais, memórias, sintomas e narrativas quanto à suicidalidade. Compreender-se-á que para além da exposição matemática fornecida pela brutalidade dos números – cerca de 1000 mortos por ano em Portugal, cujos registos oficiais pecarão por defeito devido às muitas mortes indeterminadas ou equívocas – o suicídio revela mais do que dados estatísticos epidemiológicos. Afinal, estamos perante pessoas angustiadas e doentes no meio dos seus complexos mecanismos do cérebro e da mente. Na verdade, daqueles trilhos mentais turbulentos, quer pela reemergência de traumas de infância quer por acontecimentos de vida dolorosos recentes, se constrói o chamado processo suicida. Aqui chegados, parecem despontar inquietações, umas mais larvares, outras mais exuberantes, entendidas como lutas interiores. “Desaparecer, desligar, renascer, hibernar?”… A esse constructo se chama ambivalência. Representa uma dimensão não estática e fervorosamente cintilante que acompanha o suicida até à morte. Talvez este problema da ambivalência, para lá da prática clínica específica destas psicopatologias multideterminadas, seja mais visível na arte poética que retrata tais mágoas, esses confrontos de estados de humor. Por exemplo, nos oxímoros da escrita que exibem a pretensão de simultaneamente querer-se tudo e o seu contrário, o preto e o branco, o sol e a chuva, a vida e a morte.
Focando agora, num prisma clássico, uma das melhores sínteses didácticas sobre o que é o “cenário suicida” tem origem em Edwin Shneidman (1918-2009), considerado por muitos o “pai da suicidologia”: Dor psicológica, perda da autoestima, constrição da mente, isolamento, desesperança e fuga. Esta última característica significaria a única escapatória imaginada no horizonte para suspender tal dor, tida como intolerável e duradora. A principal doença psiquiátrica que leva ao suicídio é a depressão major, acima da esquizofrenia, consumo de substâncias, perturbações da personalidade ou perturbação de stress-pós traumático. No entanto, convirá referir a frequente existência de comorbilidade com alguns destes quadros clínicos a surgirem em associação.
2. O Risco de Mimetismo
A fundação da Sociedade Portuguesa de Suicidologia (SPS), em 2000, – da qual tivemos a honra de ser o seu primeiro presidente – congregaria profissionais oriundos de diversas origens. Na sua génese importa referir trabalhos pioneiros das décadas de 1980 e 1990 do século XX, principalmente de psiquiatras, sociólogos, médicos legistas e de saúde pública, mais evidenciados em escolas universitárias de Lisboa, Coimbra e Braga, ou em hospitais, como Beja e Portalegre. O tema escolhido para o primeiro simpósio da SPS, realizado em 2001 no Hospital de Santa Maria, foi precisamente “O Suicídio e a Comunicação Social”. Após profusa divulgação e insistência de convites a órgãos de comunicação social, envolvendo inclusive contactos personalizados, compareceu apenas um jornalista. Uma tristeza, uma frustração. O principal objetivo de debater e informar acerca das normas de “Como Dar as Notícias de um Suicídio” saiu lamentavelmente gorado. No fundo, pretender-se-ia sensibilizar para as estratégias de prevenção do suicídio e para o papel relevante da comunicação social.
Nesse mesmo ano, o jornal Tal & Qual publica com grande destaque, na capa, a notícia do suicídio da cantora Cândida Branca-Flor, com fotografia e comentários interpretativos: “Tudo sobre o suicídio da cantora popular, álcool, drogas, amantes e bruxas mataram Branca-Flor”. No ano anterior, a comunicação social, com enfase para a televisão, falara abertamente, em horário dito nobre, do suicídio do jornalista Miguel Ganhão Pereira. Também o jornal 24 Horas publicaria na primeira página: “Quatro suicídios da GNR e PSP em cinco dias” com letras a vermelho. Já no século XXI, a revista Lux publica uma capa com fotografia de Robert Enke, o antigo guarda-redes do Benfica e da seleção alemã, após o seu suicídio em 2009, referindo-se à sua carta de despedida à mulher e à filha de menos de um ano: “As últimas horas antes do suicídio”, com esta última palavra em destaque. Em 2010, o jornal Público coloca na capa a fotografia de Dzennhet, uma bombista suicida, com os dizeres: “Dzennhet, a viúva negra que se fez explodir no metro de Moscovo era uma adolescente de 17 anos”. E poderíamos continuar. Os exemplos de capas infelizes têm surgido praticamente em quase todos os órgãos dos mass media portugueses sem que haja uma auto-regulação assertiva inibitória ou intervenção eficaz da parte da Entidade Reguladora para a Comunicação Social.
Recuando na História da Humanidade, as epidemias de suicídio, pelo mimetismo, remontam há séculos. Talvez uma das mais antigas tenha sido relatada por Plutarco em relação às raparigas de Mileto, Grécia Antiga, atual Turquia, no século I: “Todas foram possuídas por um desejo de morrer e uma vontade furiosa de se enforcar. Palavras e lágrimas não adiantavam; elas enforcavam-se”. Para acabar de vez com os suicídios foi decretado que o cadáver seria exposto na praça pública.
Durante a Idade Média e a Idade Moderna, o peso condenatório da Igreja Católica quanto aos suicidas – que vinha desde Santo Agostinho, Bispo de Hipona, atual Argélia – impor-se-ia frequentemente no Direito segundo a regra do “puniatur ac si delictum commisum fuisset”. Isto é, o corpo do suicida deveria ser profanado repetindo-se o método suicida utilizado e depois exposto na via pública.
Em 1774, Johann Wolfgang Van Goethe publica a obra Die Leiden des Jungen Werther, conhecida simplesmente por “Werther”, uma história de um intenso romance de amor impossível, de um desventurado, um desgraçado, que culmina com o suicídio do protagonista. Este livro seria proibido em diversos países da Europa por causa da onda de suicídios em jovens românticos, desiludidos, frustrados nos seus amores. Curiosamente, em Portugal, seria escolhido para abertura da coleção “Os Livros Imortais” da Guimarães Editores. Ainda acerca de livros polémicos sobre temáticas que se prendem com a decisão de acabar com a vida e seus procedimentos, referimos, a título de exemplo, no século XX, Suicide Mode D´Emploi (1982) de Claude Guillon e Yves Le Bonniec e Final Exit (1991) de Derek Humphry, obras fracturantes e controversas de forte impacto social.
Quando David Phillips, em 1974, constatou uma correlação positiva entre notícias de suicídio de primeira página do New York Times (1946-1968) e a ocorrência de novos suicídios nas semanas seguintes, denominou de Efeito Werther tal fenómeno, termo hoje usual em suicidologia. Só a morte de Marilyn Monroe, em 1962, terá desencadeado 197 suicídios.
O início da década de 1970 traria o mito do “Clube dos 27” depois dos alegados suicídios dos músicos Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison aos 27 anos, mais tarde confirmado nas mortes de Kurt Cobain (1994) e Ami Winehouse (2011) com a mesma idade. Não tendo tradução estatística permanece como uma curiosidade de potencial efeito nefasto para populações jovens vulneráveis.
O fanatismo e a paranóia de certos pastores religiosos levariam a suicídios coletivos que no seu total perfizeram mais de mil vítimas, considerando apenas estes três exemplos: Jim Jones, “Templo dos Povos” (1978), David Koresch, “Davidianos” (1993) e Luc Jouret, “Ordem do Templo Solar” (1994). Tais trágicos episódios de loucura, inseridos na manipulação da psicologia de massas, recomendariam alguma contenção informativa.
A Internet e as redes sociais podem jogar um papel desestabilizador nas estratégias de prevenção do suicídio. Ainda recentemente os Google hits “How to Kill Yourself” eram mais numerosos do que os “Suicide Prevention”. Séries como “13 Reasons Why” ou ainda “desafios” na internet como o “Jogo da Baleia Azul”, “Suicide Bob”, entre outros similares, parecem prejudiciais para a construção da identidade dos jovens tal como para a descoberta das razões para viver e aquisição do sentimento de pertença.
Portanto, a comunicação social deverá assumir-se como um importante aliado e parceiro integrante do Plano Nacional de Prevenção do Suicídio (2013) – no qual participámos ativamente e disponível on line – promovendo não só a literacia e a saúde mental mas também lutando contra o preconceito e o estigma. Se o objetivo editorial das publicações visar apenas a exploração de sensacionalismos relacionados com as condutas suicidas, tal corresponderá a um mau serviço prestado à comunidade, violando regras de bom senso e boas práticas de saúde pública. Referimo-nos ao risco de imitação da parte de populações mais frágeis e susceptíveis de passarem a um ato suicida perante certos contextos disfuncionais.
Reconhecendo precisamente a importância da comunicação social nesta temática da prevenção, a Organização Mundial de Saúde editou um manual contendo recomendações simples e eficazes, sobre o tratamento noticioso dos casos de suicídio. Vejamos as principais:
O QUE FAZER:
- Trabalhar em conjunto com as autoridades de saúde aquando os factos;
- Apresentar apenas os dados relevantes nas páginas interiores;
- Realçar as alternativas ao suicídio;
- Fornecer informações sobre linhas de ajuda e recursos comunitários;
- Publicar indicadores de risco e sinais de aviso.
O QUE NÃO FAZER:
- Publicar fotografias;
- Publicar cartas de despedida;
- Noticiar detalhes específicos do método suicida usado;
- Glorificar ou apresentar de forma sensacionalista o ato suicida;
- Usar estereótipos religiosos ou culturais.
Todos não somos demais para implementar estratégias de prevenção do suicídio. A comunicação social deve ser encorajada a uma forte contenção na publicação de notícias de suicídios. Um verdadeiro serviço à comunidade. A todos nós.