Coimbra, do divã ao cornetim

À figura do choro das carpideiras por Coimbra e da inerente precisão dos lenços de papel, ocorre imediatamente uma óbvia dicotomia: os que os usam e os que os vendem. Esta relação bipolar poderá ser enriquecida com uma triangulação, ou seja, um novo vértice: os que fabricam os lenços. Mas o que tem isto a ver com a minha cidade, impregnada de História, capital do Reino nos séculos XII-XIII, e com uma das Universidades mais antigas do mundo?

Quando eu tinha 10 anos ouvia dizer reiteradamente que Coimbra era a terceira cidade do país, depois de Lisboa e do Porto. Pelo prestígio, seus industriais, pensadores ou agentes culturais. Era uma cidade que exibia duas vertentes bem definidas: a Academia e a Indústria. A propalada imagem da “Torre de Marfim” aplicada à Universidade fazia algum sentido segundo a ideia desse afastamento altaneiro e emproado face aos não académicos, mais ainda aos operários. Convirá relembrar que, dentro dos diversos privilégios, a Universidade tivera polícia própria e prisão privativa, na cave da Biblioteca Joanina. Um cetro de poder comummente fora da realidade do quotidiano dos simples mortais. Tal separação desses dois mundos observava-se, por exemplo, nas disputas ocasionais entre estudantes e futricas em incidentes relacionados com a rivalidade dos adeptos do futebol da Académica e do União, particularmente acesos até à década de 1940. De maior interesse antropológico e sociológico, ficam memórias das dominâncias territoriais das tertúlias mais assanhadas dos apaniguados dos dois clubes: Café Arcádia e Café Santa Cruz.

É precisamente por aquela altura (anos 40) que ocorrerá a demolição da Velha Alta que alguns interpretaram como um sinal de miopia política e menosprezo pelos salatinas, descendentes dos valorosos soldados vencedores da Batalha do Salado, deslocados “à força” para diversos bairros periféricos, que ainda hoje persistem, como Celas, Loreto ou Arregaça. Sendo, ao tempo, Oliveira Salazar e Duarte Pacheco dois dos poderosos e influentes homens da Ditadura, não foi conceptualizado um outro rasgo, isto é, a requalificação da cidade muralhada, Aeminium, Colimbria, Coimbra, com quase mil anos de História após a reconquista cristã por D. Fernando Magno em 1064.

Do ponto de vista do tecido industrial, Coimbra era conhecida, mesmo internacionalmente, pela porcelana, cerâmicas, têxteis, cerveja (“a boa água faz a melhor cerveja”), massas, bolachas (curiosamente conheci há poucos anos o inventor da bolacha Coríntia da Triunfo, uma das minhas favoritas) … Tudo destruído! É uma dor de alma percorrer essas ruínas industriais, como tive ocasião de fotografar para efeitos de uma intervenção num congresso. Com tantos fundos europeus disponíveis, é estranho não ter havido interesse ou capacidade para a reconversão do parque industrial na aproximação a fábricas que gerassem mais-valias. Claro que empresas como a Bluepharma ou a Critical Software são dois raios de luz na noite escura… É vox populi que Coimbra sempre teve empresários a menos e patrões a mais, mas quase meio século depois do 25 de Abril de 1974 já surgiram novas gerações com outras mentalidades e certamente com melhores qualificações… E a Universidade produz mais que especialistas em Humanidades, biólogos, químicos, engenheiros, gestores… Então, onde estão os entraves? Burocracia excessiva? Falta de planeamento? Dificuldade em captar investimento? Discriminação negativa do Poder Central?

Na verdade, Coimbra tem vindo a perder população, até porque não consegue fixar os seus jovens licenciados que sentem uma maior atração por Lisboa, Porto ou mesmo pela emigração. A cidade, com cerca de 135 mil habitantes, o 19º Concelho nacional, tem vindo a perder em quase todos os índices económicos. Uma tristeza! A posição geoestratégica central perdeu relevância. Em termos de áreas de influência, o sul do Porto é Aveiro-Norte. O norte de Lisboa é Leiria-Sul. Coimbra está espartilhada. O pior cego é o que não quer ver.

Perplexidades, despesas e inércias como a saga do MetroBus ou os escandalosos desvios em obras públicas como a Ponte Rainha Santa, o Hospital Pediátrico ou o Convento de S. Francisco, fragilizam a cidade na sua desejável imagem de contas de rigor.

Por outro lado, a Universidade de Coimbra tem descido nos “rankings” internacionais. Recentemente (2018), o “Times Higher Education” remeteu-a para o patamar das 601 às 800, entre 1396 avaliadas. Comparações socioeconómicas com cidades europeias com afinidades, exemplificadas em Cambridge, Bolonha, Heidelberg e Montpellier, suscitam algumas reflexões. Apenas breves apontamentos: Cambridge tem um reputado Campus de Biomedicina, com 100 empresas e 5 mil pessoas ligadas ao Trinity College; Bolonha apresenta uma Agência para o Desenvolvimento, 23 Faculdades e 100 mil alunos; Heidelberg tem áreas de ponta em Biotecnologia e Estudos do Cancro; Montpellier é conhecida pela Robótica e Biomedicina. Portanto, novas tecnologias de inovação são desejáveis para a cidade de Coimbra. Importante é mobilizar recursos e argumentos porque existe massa crítica e uma plêiade de protagonistas à espera de oportunidades na sua própria terra. A autoestima dos conimbricenses merece ser espevitada.

Quando há 20 anos a Deloitte perguntava: “O que faz atrair pessoas e investimento?”, a resposta estava nos Espaços e Ambiente; Transportes; Imobiliário e Urbanismo; Ciências e Saúde; Economia e Turismo”. Conhecidos os alvos há que porfiar com inteligência e vontade. A cidade carece de ser alindada. Veja-se o abandono da Sereia e de Vale de Canas. O desleixo no Choupal. A deficiente recolha de lixos.

Coimbra é uma marca forte. A Associação Académica tem um cunho nostálgico e de paixão. O Mondego é o maior rio português. Santo António viveu aqui. Tal como Luís de Camões e muitos outros poetas, daí já se ter pensado na Rota dos Poetas. Temos a Universidade, a Sé Velha, Santa Clara-a-Velha, Santa Clara-a-Nova, o museu Machado de Castro, um Panteão Nacional, a Biblioteca Joanina, o Portugal dos Pequenitos, o Convento de S. Francisco, o Choupal, o Jardim Botânico, o Parque Verde, etc. Ou seja, há características na cidade cujo potencial poderia ser muito alavancado. Uma certa forma de reidentidade precisa-se. Tal como a valorização do eixo da Estrada da Beira até ao Baixo Mondego e Figueira da Foz. Juntos somos inequivocamente mais fortes.

Quando se sugere um Grande Museu da Ciência ou um Grande Museu de Arte Contemporânea, ambos de museologia moderna e de nível internacional, para a nossa cidade, tudo isso são boas ideias que merecem atenção. Nessa onda, quer o Museu Guggenheim de Bilbau ou o Museu Paul Klee de Berna poderiam ser inspiradores. Estímulos a convergências em prol do desenvolvimento são recomendáveis e não remetidas a querelas políticas estéreis às vezes em vis ataques pessoais que não conduzem a nada. Desgastam esforços e esbatem contributos de diferentes quadrantes. A lógica do poder pelo poder obedece frequentemente a jogos de política bafienta no seu pior, prejudicando a cidade. Há que pensar mais alto, acima do lodaçal da intriga, da crispação e da maledicência.

Coimbra, para lá das lamúrias que os lenços de papel aliviam, não pode ficar sentada à espera dos vendedores de lenços. Tem que os saber fabricar. Não sei se Coimbra estará assim tão necessitada de um divã psicanalítico – porque lá teríamos que escarafunchar no passado do “lá e então…” quando a premência dos tempos solicitam o “aqui e agora” – mas um cornetim madrugador e bem estridente talvez acordasse muita gente passiva, aprisionada ou mesmo letárgica…