“Os Grandes Pensadores” – Adriano Vaz Serra

CONFERÊNCIAS ADRIANO VAZ SERRA

“OS GRANDES PENSADORES”

“ADRIANO VAZ SERRA, A HOMENAGEM DEVIDA”

Excelentíssima Sra. Representante do Presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra

Excelentíssimo Sr. Representante do Diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra

Excelentíssimo Sr. Diretor da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra

Excelentíssimo Sr. Representante da Ordem dos Médicos

Excelentíssimos Convidados

Excelentíssimo Sr. Diretor do Centro de Responsabilidade Integrado de Psiquiatria do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra

Prezados Familiares e Amigos do Professor Doutor Adriano Vaz Serra

Prezados Colegas, Senhores Enfermeiros e demais Profissionais de Saúde

Minhas Senhoras e Meus Senhores

Permitam que vos saúde e vos cumprimente cordialmente pela vossa presença nesta excelente e muito justa iniciativa de 18 de setembro de 2020, sessão inaugural do ciclo “Os Pensadores da Psiquiatria”.

Um agradecimento é devido pelo convite para proferir esta conferência sobre um académico e um clínico tão ilustre, o Prof. Doutor Adriano Vaz Serra.

Trata-se de uma sentida honra, mas simultaneamente a convicção de uma enorme responsabilidade, de num ensaio de síntese não só tentar perscrutar o pensamento, mas também relembrar alguns aspetos do trajeto científico do nosso saudoso Mestre, falecido em Coimbra em 2 junho de 2019. Contava 79 anos de idade.

Com raízes nas terras graníticas beirãs que tonificam o corpo e o espírito, educado e instruído na Lusa-Atenas, a existência de fortes modelos médicos e científicos na família, estimularam o jovem Adriano Vaz Serra a enveredar pelos caminhos da Medicina e posteriormente pelos domínios da Psiquiatria, da Psicologia e suas fronteiras. O percurso escolar pautou-se sempre pela excelência de elevadas classificações e rápida progressão na carreira: Licenciatura em 1964, Doutoramento em 1972, Direção do Serviço em 1973, Professor Extraordinário em 1974, Professor Catedrático em 1979, Jubilação em 2010.

Adriano Vaz Serra nasceu em Coimbra aos 14 de fevereiro de 1940, quase seis meses após o início oficial da Segunda Guerra Mundial, ou seja, a Invasão da Polónia, embora o exército de Hitler, como sabemos, já tivesse invadido a região dos Sudetas na Checoslováquia. Curiosamente, Sigmund Freud havia falecido um ano antes, em 1939, em Londres, na sua casa de Hampstead, local de refúgio devido a ameaças e perseguição nazi, casa da qual usufruiu apenas um ano; recorde-se: um neurologista que se tornaria num dos mais afamados psicanalistas do século XX, de elevada craveira intelectual e autor fecundo, como “A Interpretação dos Sonhos”, que para muitos estudiosos é uma das obras geniais publicadas até hoje. Contudo, é a segunda geração psicanalítica com os seus trabalhos de maior relevo, celebrizada por Mélanie Klein ou Karl Menninger, apenas para citar dois exemplos de nomeada dos anos 30 e 40, que coincide com os primeiros passos de infância de Adriano Vaz Serra. Não seriam, todavia, estas correntes psicodinâmicas que o iriam influenciar sobremaneira, apesar de aqui e além surgirem reminiscências, como um texto sobre a rejeição e o desejo quase secreto de escrever um livro sobre neuroses, mais tarde reorientado para a denominação stress, apropriada à contemporaneidade e catalisadora de vários escritos.

Voltando à Segunda Guerra Mundial (1939-1945), de modo a um melhor enquadramento global e facilitar a linha condutora deste texto, parece admissível a perceção de uma certa pulverização das escolas psicodinâmicas, perdida fisicamente a sua grande referência patriarcal: Freud. Anteriormente, aqui num breve piscar de olhos histórico, à Escola Francesa de Alienistas, com o seu apogeu no século XIX e primórdios do século XX, exemplificada em Jean-Martin Charcot, na Salpêtrière, em Paris, seguira-se a famosa Escola Alemã, mais polarizada em Heidelberg, através de eminentes protagonistas como Emil Kraepelin, reputado tratadista, que aliás visitaria Portugal pouco tempo depois da implantação da República. Esta poderosa atração germanófila levaria alguns grandes vultos da Psiquiatria Portuguesa à Alemanha, como Sobral Cid, em 1913, um psiquiatra psicopatologista, natural de Lamego, e Barahona-Fernandes, em 1936, um psiquiatra-filósofo, natural de Vinhais. Porém, o destino do jovem psiquiatra conimbricense seria outro: Londres, Hospital de Saint Thomas, bem no Centro desta capital, ainda que tenha também observado pacientes no Hospital Real de Waterloo e no Hospital de Belmont de modo a perfazer a amostra da investigação do trabalho de campo relativa à sua Dissertação de Doutoramento. De facto, a Escola Inglesa de Psiquiatria emergira no pós-guerra como um farol clínico de excelência, bastará recordar William Sargant, William Mayer-Gross, Eliot Slater ou Martin Roth, estes três últimos, autores da reconhecida obra “Clinical Psychiatry” dos finais dos anos 60. Entretanto, do outro lado do Atlântico, paulatinamente, a Escola Americana de Psiquiatria começaria a impor-se como a principal locomotiva científica dos modelos neurobiológicos e das neurociências em geral.

Décadas antes, a experiência tão famosa quanto polémica de John Watson e Rosalie Rayner da Universidade de John Hopkins, nos Estados Unidos da América, da transformação de estímulos neutros em estímulos aversivos, revelou-se uma autêntica fábrica do medo para o Bébé Albert de 11 meses. Na verdade, estávamos perante a invenção no laboratório de um paciente fóbico que relançaria a clássica Escola “Behaviourista”, melhor dizendo, despertaria os inícios “Pavlovianos” na Rússia dos Czares de experiências em animais. Repescados conceitos diversos como reflexos condicionados, generalizações de estímulos e reforços aí estava em força, na comunidade científica, uma corrente comportamental, onde investigadores como Burrhus Skinner, nas suas caixas de ratinhos, ou Albert Bandura, na teoria da aprendizagem social, se destacariam, entre outros.

Noutra perspectiva dos anos 60, de foco virado para a personalidade, esse constructo misto psicobiológico de temperamento e carácter, despontariam em Londres os trabalhos dos alemães Hans Eysenck e Sybil Eysenck sobre neuroticismo e extroversão (provavelmente também decantados de Carl Jung e da psicanálise) e a investigação de Julian Rotter, nos Estados Unidos da América, através dos conceitos de internalidade versus externalidade quanto ao lócus de controlo. Isto é, um predomínio do que o indivíduo pensa ser capaz de controlar em oposição ao que crê depender apenas da sorte ou do destino. Todos estes trabalhos parecem ter tido um efeito impactante em Adriano Vaz Serra, como se revelariam claramente mais tarde, na inspiração para a construção de instrumentos psicométricos quer sobre o auto-conceito, o coping ou a vulnerabilidade ao stress.

Nos Estados Unidos da América, surgiriam precisamente a partir da década de 60, os trabalhos de Aaron Beck, um psiquiatra cognitivista, multifacetado, autor de diversas escalas de avaliação psicométrica, muito caro a Adriano Vaz Serra, que tivera o mérito da elaboração de um inventário de mensuração de sintomatologia depressiva que se tornaria uma ferramenta muito útil e universal para a investigação: o Beck Depression Inventory (BDI), não só válido para a prática clínica, mas também para ensaios com psicofármacos e respetivas comparações. Na verdade, à caricatura mordaz do “choque elétrico versus cubo de queijo no rato de laboratório” ou da “vergastada do pingalim versus cubo de açúcar no cavalo de obstáculos”, extrapolado para os humanos, como em Martin Seligman no “learned helplessness” e suas experiências no animal, desenvolveu-se o enriquecimento da esfera cognitiva. Importavam, portanto, agora, os esquemas mentais, as cognições e suas eventuais distorções, como inferências arbitrárias, abstrações seletivas, pensamento dicotómico e globalmente todo o universo dos pensamentos automáticos negativos. Adriano Vaz Serra cedo abraçou estas conceptualizações, posicionando-se à frente do “behaviourismo” de outrora, estando tal bem patente em diversos trabalhos. Ou seja, apesar de médico psiquiatra a trabalhar na capital inglesa com John Pollitt, um ilustre orientador clínico que havia postulado as Depressões Tipo J  (“Justified”) e as Depressões Tipo S (“Somatic”), e sendo, como sempre, deveras estimulante o estudo das doenças do humor para Adriano Vaz Serra, este não perderia de vista a relevância do sentir, do pensar, tanto quanto o agir. Como escreveu: “Acalentei a esperança de vir a conseguir uma maior compreensão do sofrimento de cada um e, como tal, integrar-me mais plenamente nas suas queixas”. Este ponto será de valorizar para a compreensão humanista do nosso Mestre, conforme explanaremos adiante.

Temos, portanto, um investigador português em Londres no dealbar da década de 70, entusiasmado a estudar a depressão, uma das patologias complexas da psiquiatria e as suas relações com a personalidade. Logo à partida, pelas dificuldades conceptuais e seus limites, bem visível tanto na nosologia como na nosografia. Associadamente pelos parcos recursos terapêuticos ao tempo numa visão de conjunto que convirá referir, até porque estamos a falar de pessoas doentes. Recorde-se ser uma época em que o primeiro antidepressivo considerado eficaz havia sido descoberto cerca de 13 anos antes, a imipramina, o Tofranil, apresentado em Viena numa sala com menos de 10 assistentes. A título de curiosidade, a fluoxetina, o famoso Prozac, só seria lançado no mercado na década de 80. Ansiolíticos do tipo das benzodiazepinas já havia alguns disponíveis no arsenal terapêutico como o clordiazepóxido e o diazepam, tal como escassos neuroléticos, exemplificados na clorpromazina e no haloperidol.

O estágio em Londres, após o Serviço Militar em Nampula, Moçambique, viria a tornar-se um período de abertura ao mundo e de valorização pessoal como parte de uma cultura científica conducente à sua Tese de Doutoramento, onde a clínica depressiva e a estatística se entrecruzariam. Entre outros instrumentos, utilizaria uma base sociodemográfica, o Beck Depression Inventory, o Maudsley Personality Inventory e as Matrizes Progressivas de Raven. Para além de outras conclusões, os constituintes do quadro clínico revelariam que o designado “desvio funcional depressivo” se mostrou com maior isenção em qualquer processo de análise em relação às dimensões da personalidade. A edição em livro de 378 páginas seria composta e impressa na Gráfica de Coimbra fortalecendo uma duradoura amizade com o Padre Valentim Marques. Não deixará de ser um pormenor curioso que nas suas 262 referências bibliográficas da sua Dissertação de Doutoramento apenas quatro portugueses surgem mencionados: Barahona-Fernandes, Fernandes da Fonseca, Pedro Polónio e … Adriano Vaz Serra, reportando-se a um trabalho seu sobre suicídio publicado na revista Coimbra Médica em 1971. Três anos depois o British Journal of Psychiatry publicaria uma súmula da sua Dissertação, num artigo de co-autoria com o seu estimado orientador.

Então, de regresso a Portugal e à sua cidade de Coimbra, no início da década de 70, doutorado com a Tese “A Influência da Personalidade no Quadro Clínico Depressivo (contribuição para o estudo de elementos patoplásticos da sintomatologia”, 1972), dedicada a seus Pais e aos Professores Nunes Vicente e John Pollitt, assume a Regência da Cadeira de Psiquiatria e a Direção do Serviço de Psiquiatria dos Hospitais da Universidade de Coimbra, instalado num dos Blocos de Celas, num edifício por vezes apelidado de forma menor de pavilhão, num edifício carregado de História e de histórias, hoje tristemente encerrado.

O pendor comportamental manifestar-se-ia evidente, mas não dogmático ao ponto de espartilhar outros modelos. De espírito mobilizador e diligente, contribuiu para a vinda a Coimbra do psicólogo Victor Meyer na década de 70 para conferências e oficinas de trabalho de orientação cognitivo-comportamental. Referimo-nos a um investigador britânico do Hospital de Middlesex com reconhecidos dotes pedagógicos em perturbações obsessivo-compulsivas, muito apreciado pelos seus pares e ainda hoje lembrado pelos colegas que com ele conviveram.

Os conhecimentos científicos de Adriano Vaz Serra eram sólidos, respaldados por intenso trabalho e bibliografia apropriada num tempo de pesquisas difíceis em raras bibliotecas de acervos robustos e sem internet… Muitos de nós beneficiámos das suas curiosas “fichas de matéria” manuscritas com a sua letra pequenina, ligeiramente bicuda e de maiúsculas requintadas, oriundas dos tempos londrinos, cujos tópicos consultava e lia alto e bom som, de pé, em sessões noturnas muito concorridas num Auditório do Bloco de Celas, nos finais dos anos 70, onde hoje está a Ortopedia A.

Os alunos recordá-lo-ão como um professor elegante, aprumado, meticuloso, de capacidade de exposição clara, por vezes acompanhada de um toque de humor britânico, com histórias clínicas que até poderiam fazer sorrir pela excentricidade de algumas das situações. Professor pragmático, não se coibia do uso de aforismos, metáforas ou alegorias, frequentemente evocava o psiquiatra austríaco sobrevivente de campos de concentração, Viktor Frankl, autor do notável livro “O Homem em Busca de um Sentido”: “Os rochedos só se veem quando a maré está baixa”. Uma figura simples, mas valiosa, para o entendimento do modelo Stress-Diátese, profusamente citado na literatura, e para as Teorias do Trauma. Amiúde, ainda nesta linha de pensamento, também abordava usualmente a dicotomia “Fatores predisponentes versus fatores precipitantes” e a sua relevância para o compreender e explicar em saúde mental. A nível das doenças do humor usava as denominações depressão neurótica e depressão endógena nos seus diagnósticos, tal como a Escola Suíço-Alemã de Paul Kielholz dos anos 70.

Adriano Vaz Serra era um professor afável e solícito na ajuda ao esclarecimento de dúvidas ou orientações de trabalhos. Nas décadas de 70 e 80 eram muito úteis as suas “máquinas de calcular”, embriões dos computadores pessoais que estavam a florescer. Dessa boa vontade muitos de nós nos socorremos em serões de trabalho em tempos de cooperação, respeito e lealdade. Um clima saudável!

Pelo trabalho, pela competência, pela qualidade dos recursos humanos, o Serviço de Psiquiatria dos Hospitais da Universidade de Coimbra rapidamente se alcandorou a uma Escola de renome, de formação de quadros dos campos da psiquiatria e ainda da psicologia clínica e da enfermagem por acordos de protocolos. O bom nome do Serviço atraiu, inclusive, médicos de diferentes nacionalidades. À atividade clínica normal se associariam os novos métodos de investigação, quer pela introdução da análise estatística quer pela aquisição de diverso tipo de equipamento neurofisiológico. Relembramos o entusiasmo pelas novidades dos programas informáticos de estatística e o fascínio pela análise fatorial. Tratou-se de um avanço de que todos beneficiariam.

Quando olhamos à nossa volta, é um facto que do Minho ao Algarve, da Madeira aos Açores, encontramos colegas psiquiatras que passaram por Coimbra e aqui fizeram o seu tirocínio de aprendizagem e disso falam com uma certa nostalgia e reconhecimento.

Do ponto de vista académico, as especificidades do Serviço e o exemplo do seu timoneiro trouxeram inspirações para o desenvolvimento de Teses de Doutoramento e de Mestrado que valorizariam não só o Serviço, mas também a Universidade de Coimbra, estando aqui presentes neste auditório alguns desses protagonistas.

A fundação da revista “Psiquiatria Clínica” na década de 70, através de um vigoroso empenho pessoal, sendo Adriano Vaz Serra, Diretor, Editor e Proprietário, tornar-se-ia um baluarte da literatura psiquiátrica portuguesa durante mais de 30 anos, ficando para a História da Psiquiatria como uma das raras publicações disponíveis para os autores nacionais. Muitos trabalhos de relevo da psiquiatria portuguesa do último quartel do século XX e dos primórdios do século XXI encontram-se indelevelmente impressos nas suas páginas, nesse período dourado da psiquiatria nacional.

Um aspeto pouco conhecido, mas que logo denotaria a sua generosidade, foi o apoio clínico dado à Colónia Agrícola de Arnes, Soure, no final da década de 70, através da contribuição voluntária do corpo médico do Serviço de Psiquiatria dos Hospitais da Universidade de Coimbra, numa escala rotativa em espírito de equipa. Na verdade, por essa altura, havia o risco desses doentes crónicos e institucionalizados ficarem sem os devidos cuidados médicos assistenciais.

Noutro ângulo, Adriano Vaz Serra demonstraria ser um líder tolerante, cordato e conciliador. Os exemplos são muitos. Focaríamos apenas alguns que nos saltam logo à memória: a abertura aos jovens especialistas para se dedicarem a subespecialidades de maior gratificação, como a sexologia, a prevenção do suicídio, a psicossomática ou a gerontopsiquiatria, o franquear da sua biblioteca pessoal para pesquisas bibliográficas e a disponibilização a título gracioso das suas escalas a investigadores de diferentes áreas do conhecimento, para além da sua flexibilidade inteligente em relativizar e desculpar pequenas falhas no Serviço. Um coração gigante, afinal, um outro aspeto do carácter bem reconhecido principalmente pelos seus colaboradores mais próximos, médicos, enfermeiros, secretários, psicólogos, assistentes sociais, auxiliares… Ao lidar com algumas das naturais tensões do Serviço, próprias de dinâmicas de subgrupos, exibia bom senso e um saber de gestão de equilíbrios. Como médico, no seu mister, era conhecida a dedicação às “almas aflitas” dos seus doentes, como tantas vezes ouvimos falar, sempre disponível para os atender, pessoal ou telefonicamente. Esta assunção de pessoa empática, pôde também constatar-se, claramente, na decisão de colocar no frontispício da entrada do Serviço em Celas uma placa com os dizeres “Clínica Psiquiátrica”, ou seja, há quase meio século já como protagonista de primeira linha no combate contra o estigma e o preconceito social em relação aos doentes mentais, que não teriam que habitar manicómios ou outros hospícios de alienados. Eles são doentes como todos os outros e deverão ser tratados com respeito e dignidade, integrados em cuidados gerais assistenciais, segundo o clássico modelo biopsicossocial da Organização Mundial de Saúde, precisamente uma conquista civilizacional dos anos 70. Era surpreendente, inovadora e temerária para muitos, a capacidade da manutenção do Serviço de Psiquiatria no regime de “porta aberta”, em enfermarias sem porteiro. De certa forma, isso espelhava o que todos pensávamos e sentíamos: um hospital psiquiátrico não é uma espécie de prisão. Por fim, ficávamos reconfortados de que tal decisão estava correta quando ouvíamos os testemunhos dos doentes e seus familiares.

A seguir ao 25 de Abril de 1974 veio ao de cima um halo de pacificação e concórdia, numa época em que se respirava liberdade e esperança num mundo mais justo, acolhendo na docência da disciplina de Psiquiatria, como Assistente, um dos mais ilustres colegas que tinha sido vítima da polícia política de outrora e dos Tribunais Plenários. São estes gestos, em certos momentos críticos da vida, que revelam a fibra e a probidade dos homens.

Recordamos ainda, dentro da linha da solidariedade e da compaixão, por exemplo, nos anos 80, o seu apoio ao arranque do Telefone SOS de Coimbra, inspirado nos Samaritanos londrinos do Padre Chad Varah, a colaboração quer com a Cáritas Diocesana em conferências na região Centro quer com as Irmãs Hospitaleiras bem como outras iniciativas de cariz cívico e social. Compreender-se-á que não era nada fácil nas décadas de 70 e 80 a abordagem em público de assuntos tabu, como o suicídio ou a sexualidade, por vezes perante um auditório muito conservador. Nós próprios sentimos essa inquietação quando, para uma Mesa Redonda, nos solicitaram há 40 anos uma intervenção sobre “A Pornografia e os seus Efeitos Psicológicos” na cidade da Guarda, com perguntas por escrito no final para todo o painel, onde se encontrava Adriano Vaz Serra. Que sessão inesquecível!

Continuando esta viagem cronológica, logo no início da década de 80 começaram a ser organizados no Serviço de Psiquiatria os Simpósios da Relação Médico-Doente na Prática Clínica, com a participação de autores oriundos de todo o país, cujas intervenções mereceriam publicação em suplementos da revista “Psiquiatria Clínica”. Para lá dos aspetos científicos, tais eventos eram também vividos como um espaço de partilha e convívio, principalmente numa fase de inércia porque passava a Sociedade Portuguesa de Psiquiatria, sucedânea, em 1979, da Classe de Psiquiatria outrora englobada na Sociedade Portuguesa de Neurologia e Psiquiatria. Relembre-se que só em 1989 surgiria a denominação contemporânea de Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental através de um processo que poderemos interpretar de refundação.

Em meados da década de 80, Adriano Vaz Serra confrontou-se com a velha e acesa discussão sobre se os doentes psiquiátricos deveriam incorporar o novo Hospital Universitário de Coimbra que se estava a construir. À visão arcaica, até aos anos 40 do século XX (veja-se ainda em 1944 o projeto Manicómio de Sena para Celas, Coimbra), de que o lugar dos doentes psiquiátricos deveria ser em unidades afastadas dos centros urbanos, por resquícios e influências do modelo asilar do século XIX e o receio de potencial perigosidade dos chamados loucos, prevaleceu a sua determinação e modernidade, apoiado sem tibiezas por colegas e enfermeiros de pensamento arejado. Então, em meados dos anos 80, o Serviço de Psiquiatria dos Hospitais da Universidade de Coimbra ocuparia parte do Rés-do-Chão do popularmente designado Hospital Novo, ainda que a Enfermaria de Psiquiatria Mulheres tenha permanecido em Celas. Ou seja, o Serviço ficou tragicamente dividido. Isto é, uma semivitória para o tempo. Disso Adriano Vaz Serra falaria com mágoa. Lamentavelmente, o poder instituído, desajustado por horizontes limitados, não concedeu mais espaço para as necessidades da Psiquiatria contemporânea. Convirá esclarecer que por essa altura os Centros de Saúde Mental ainda não tinham sido extintos, o que só ocorreria na década de 90, sendo Ministro da Saúde ao tempo, Arlindo de Carvalho, mas as resistências à mudança eram muito fortes, como, aliás, se verificaria noutros hospitais. Tal apontamento serve aqui apenas para se compreender quão imperativa e sustentada teve que ser a argumentação para a conquista do que a nível da Organização Mundial de Saúde há muito era óbvio: Os doentes psiquiátricos são como todos os outros e devem estar integrados em hospitais gerais. A este propósito, há um episódio pouco conhecido, mas que merece uma breve nota. Numa das visitas a Coimbra de uma comitiva de psiquiatras ligados à Organização Mundial de Saúde, num périplo pelo país, alguém perguntou, espantosamente, onde estavam as celas dos doentes. Porque há o Bloco de Celas… mas sem celas. Afinal, confusões perigosas, mas provavelmente sintónicas com o que alguém até poderia pensar mesmo no século XXI!

A instalação de parte do Serviço de Psiquiatria no Hospital Novo integrou a Direção do Serviço, Enfermaria de Homens, Hospital de Dia, Consulta Externa e a Psicologias Clínica e Psicométrica. Com mais áreas disponíveis para o ensino bem como a sua faceta de docente, Adriano Vaz Serra, cofundador da Faculdade de Psicologia de Coimbra, onde lecionaria diferentes disciplinas (Psicofisiologia, Psicopatologia e Saúde Mental e Terapêutica do Comportamento), propiciaria estágios a psicólogos ávidos de ferramentas psicométricas à semelhança do que ocorreria com colegas psiquiatras ou alunos de outras Escolas. Talvez também motivado por tais necessidades, inicia a partir de 1987 até 2000, num ciclo pioneiro em Portugal, muito louvado, a construção de diferentes escalas de avaliação: “Inventário Clínico de Auto-Conceito” (1987), “Inventário de Resolução de Problemas” (1987), “Inventário de Avaliação Clínica da Depressão” (IACLIDE, 1994), “Escala de Avaliação de uma Personalidade Dependente” (INDEP, 1996), “23 QVS” (2000), um questionário de vulnerabilidade ao stress. Tais instrumentos revelar-se-iam essenciais a múltiplos trabalhos de investigação, alguns de âmbito académico. Como corolário, e muito merecidamente, a Associação dos Psicólogos Portugueses atribuir-lhe-ia o prestigiado “Prémio APPORT de Reconhecimento” em 1995.

Não pretendendo entrar em detalhes sobre a feitura das escalas e sendo tarefa quase impossível hierarquizar as preferências de todas as suas criações psicométricas, não obstante, recordamos o entusiasmo da concretização do seu muito ansiado e acarinhado IACLIDE e sua publicação em monografia própria acompanhada de suporte informático e logo depois de um programa de cotação automática. Pressentia-se uma certa euforia. É perfeitamente admissível para o escopo do instrumento a inspiração “Beckiana” dos tempos de Inglaterra. Talvez uma outra preferência do autor fosse dirigida para o “23 QVS”, a sua última escala. Mas aqui confessamos já estar a navegar em águas de uma maior subjetividade e manda a prudência que deveremos eximirmo-nos a tais ousadias.

Dentro das obras de índole tratadística de Adriano Vaz Serra, a título individual, destacam-se duas: “O Stress na Vida de Todos os Dias” (1999; reedição, 2007) e “Distúrbio de Stress Pós-Traumático” (2003), sendo a primeira amplamente divulgada no âmbito das ciências da saúde, psicologia e áreas afins. Trata-se de volumes que marcaram o panorama editorial português nesses domínios do conhecimento. Todos constatámos que foram obras que lhe trouxeram grande satisfação e o sentimento de dever cumprido. Ou seja, o autor quis fazer um tributo à minúcia e à pesquisa exaustiva da temática da ansiedade e suas manifestações neurovegetativas, motoras e cognitivas, ilustradas com vinhetas de claro entendimento para o leitor e dezenas de figuras, quadros e bonecos graciosos, satisfazendo a curiosidade natural de todos, incluindo a comunicação social que frequentemente lhe solicitava entrevistas. Portanto, o antigo sonho do livro sobre “Neuroses na Prática Clínica” revestiu-se então de uma outra terminologia mais consentânea com os novos modelos neurobiológicos e cognitivo-comportamentais. Naquela obra, “O Stress na Vida de Todos os Dias”, autêntico tratado de 779 páginas com cerca de 500 referências bibliográficas, clarifica-se o essencial do seu pensamento quanto a esta esfera da vida de relação. Isto é, depois de discorrer em pormenor, em 16 capítulos, tudo o que é nodal e gira à volta do stress (conceitos, filtros cognitivos, efeitos, modificações, neurobiologia…), parte para a sua dádiva de terapeuta preocupado e pensador em termos sociais nos últimos cinco capítulos: indica caminhos e estratégias de como lidar com o stress. Fornece pistas. Ensina a pessoa a ser auto-afirmativa e a modificar as vulnerabilidades. Estimula recursos e aptidões, com exemplos. Aborda técnicas de relaxamento e de indução de imagens de paz. Tal quer dizer que o autor não ficou circunscrito ao estado da arte meramente descritivo e procurou ser transformador social e familiar através de propostas reflexivas de fácil assimilação. Um terapeuta sem vestes doutorais, com preocupações pelas pessoas de carne e osso!

Num exercício especulativo, denota-se em Adriano Vaz Serra a compreensão da força das dinâmicas sistémicas, ou seja, onde podem ocorrer núcleos de conflitualidade familiar. Tal surge recorrentemente, por exemplo, quando aborda as dificuldades do coping emocional mas logo de seguida fornece a fórmula de como implementar a resolução de problemas. Portanto, se persiste o labirinto sentimental do Eu-Tu não deixa de simultaneamente apontar a saída. De algum modo, mesmo que isto possa parecer herético, poderia configurar-se neste sistema de trocas do mundo das emoções uma aproximação a Eric Berne nos seus estratagemas da Análise Transaccional: a arte das trocas de afetos com as quais o Homem convive. Adriano Vaz Serra ao trilhar o seu longo caminho de investigação de 40 anos, descentrou-se, cresceu, integrou-se no quotidiano da vida de relação dos humanos porque adquiriu uma consciência social mais aguçada e mais intensa. E isso só o dignificou. Recorde-se que, a nível da psicometria, partira do Autoconceito, isto é, muito próximo da imagem espelhada, lembrando a psicanálise, e chegara à Vulnerabilidade ao Stress, onde estão o Eu, o Tu, mas também o Ele. O Homem e a rua. Mais mundo!

É, portanto, curioso perceber a diferenciação ao longo dos anos do núcleo de interesses de Adriano Vaz Serra. Se numa primeira fase se constata um predomínio neurofisiológico e comportamental, por exemplo num trabalho sobre as emoções em 1986, à qual se segue o período de esplendor do desenvolvimento das suas escalas psicométricas, entre 1987 e 2000, numa outra fase posterior há uma aproximação equilibrada à neurobiologia, como em 2004 no texto sobre as bases biológicas do pânico, e por fim, numa fase mais madura, denotará interesse pelo bem-estar das pessoas e das famílias, isto é, a Qualidade de Vida. Esta evolução para os estudos da Qualidade de Vida, inclusive em doentes com HIV, bipolaridade e esquizofrenia, foi também a resposta a novos desafios lançados pela Organização Mundial de Saúde da qual fora consultor para a área do stress. Tirando também partido de instrumentos psicométricos consagrados internacionalmente importava agora perceber mais sobre a alegria e a satisfação das pessoas e não apenas sobre a ausência de doença. Novamente mais mundo! Ou seja, estamos perante uma postura que cremos superior, de antropólogo humanista que em prol da cidadania mimetiza o rapaz da bússola em busca do norte onde estará a felicidade. Que coração!

Portanto, para além das suas quatro grandes áreas de eleição iniciais, Depressão, Ansiedade, Stress e Escalas psicométricas, ao mostrar uma inclinação pelo tema da Qualidade de Vida já neste século, a Fundação Calouste Gulbenkian iria fazer jus a este novo foco de atenção pela publicação e co-coordenação de textos, precisamente no ano de Jubilação, 2010.

Ainda noutro prisma, não deixa de ser curioso que a vida de Adriano Vaz Serra se acompanha paralelamente das grandes descobertas dos psicofármacos da era moderna da psiquiatria. Saída dos tempos arcaicos da camisa-de-forças, dos brometos e do choque insulínico, a psiquiatria inicia nos anos 50 a sua caminhada pelas benzodiazepinas, neuroléticos, inibidores da monoaminoxidade, antidepressivos tricíclicos, entre outros, seguindo-se o período áureo dos medicamentos “depot” para a esquizofrenia, até novas moléculas mais afinadas para os grandes quadros psiquiátricos e com menos efeitos adversos. Toda esta evolução pôde ser testemunhada já no século XXI.

Deveras, a obra de Adriano Vaz Serra é vasta, obviamente muito para além das edições em livro atrás expostas, tendo, por exemplo, escrito dezenas de capítulos de manuais em colaboração e centenas de artigos em diferentes revistas nacionais e internacionais. Teve ainda participação editorial em revistas científicas e foi por diversas vezes convidado a dar o seu contributo como prefaciador de obras científicas.

Participou ainda como parceiro em consórcios de investigação, por exemplo com a Organização Mundial de Saúde, Alto Comissariado para a Saúde, Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, entre outros. Alguns dos trabalhos corresponderam a estudos multicêntricos sobre a eficácia e segurança de psicofármacos.

Foi membro de diversas Academias Científicas, por vezes como fundador. O seu apoio à Associação Portuguesa de Terapia do Comportamento, à Associação de Psiquiatria Biológica, à Sociedade Portuguesa de Suicidologia e à Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, são bons exemplos que ilustram companheirismo, dedicação e compromisso.

Orientador de Teses de Doutoramento e de Mestrado, membro de dezenas de júris, eram-lhe reconhecidas facetas de arguente minucioso nas provas académicas, de forte impacto, mas sempre num estilo elegante e tom afável.

É de toda a justiça afirmar que havia em Adriano Vaz Serra um sentido de Escola. E isso só era possível porque se tratava de um professor amado e não temido. Como diriam os etólogos, os biólogos do comportamento, a vinculação aos líderes faz-se ou pelo terror, os déspotas, ou pelo amor, os queridos. Obviamente que era neste último cenário que se incluía. O sentimento de cooperação era muito forte e suplantava quaisquer sinais de competição exacerbada porque a todos eram fornecidas oportunidades para se destacarem nas suas áreas de gratificação clínica ou de investigação. Mesmo quando olhamos para os seus trabalhos era comum a presença de coautores. Que sabedoria!

Sublinhe-se que Adriano Vaz Serra era um homem sensível e impressionado por personagens valorosas que da lei da morte se vão libertando pela sua filantropia e grandeza de alma. A admiração de sempre por Elísio de Moura levou-o a criar em 1987 o Ciclo de Conferências Elysio de Moura, de modo a perpetuar esta figura notável de benemérito, fundador do primeiro Serviço de Psiquiatria da Região Centro, chamando a Coimbra reputadas personalidades nacionais e estrangeiras. O prestígio e a simpatia de Adriano Vaz Serra facilitavam os convites e as conferências tornaram-se numa mais-valia para o Serviço e simultaneamente numa oportunidade de partilha e convívio. Ainda as boas memórias de Londres e o intenso sentimento de gratidão, que era seu timbre, fizeram-no convidar o ilustre psiquiatra John Pollitt a vir a Coimbra para aulas e conferências nas décadas de 70/80.

Essa mesma genuína gratidão constatar-se-ia, mais tarde, quando promoveu uma justa e peculiar sessão de homenagem à dezena de antigos Chefes de Enfermagem com quem privou, um ainda contemporâneo dos Professores Elísio de Moura e Correia de Oliveira. Das diversas intervenções nesse serão magnífico, percebeu-se, para além do clima afetuoso e do regozijo pelo reencontro, uma viagem pela História da Psiquiatria do século XX, a partir de memórias curiosas e que nos faziam sorrir.

Adriano Vaz Serra tinha um compromisso de lealdade para com a sociedade científica que o rodeava. Mostrava-se disponível quando o procuravam. Era uma personalidade muito respeitada. Comummente convidado a abrir congressos com a sua excelente destreza para as sínteses temáticas de rigor, quer os pares senadores, incluindo naturalmente os bons amigos de Lisboa, Porto e outras regiões do país, quer os jovens, nutriam por Adriano Vaz Serra uma sincera admiração. O seu trato tranquilo, educado, “O Gentleman” da Psiquiatria, na feliz expressão de uma jornalista, e a sua capacidade para a busca de consensos, para lá da sua competência técnico-científica, levaram-no a diversos cargos de relevo, exemplificados na Presidência da Assembleia Geral da Secção do Centro da Ordem dos Médicos, Direção do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, tendo sido o primeiro presidente eleito, Presidência da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, que muito justamente o homenageou em Vilamoura em 2014, ou ainda na Presidência da Associação Europeia de Terapia do Comportamento. O prestígio granjeado além-fronteiras suscitaria convites internacionais sobre temáticas das suas áreas de eleição, permitindo-nos salientar conferências em Lausanne, Salamanca, Toulouse, Budapeste, Praga e Hamburgo.

Aqui e além poderia perpassar a ideia que Adriano Vaz Serra era um investigador conservador que dificilmente saía da sua área de conforto…. Nada mais errado. Apenas três exemplos por nós testemunhados: uma pesquisa exaustiva sobre o delírio de ciúme em Psiquiatria Forense no arquivo do Conselho Médico-Legal, em Coimbra, uma conferência sobre a tipologia “borderline” da personalidade nas Jornadas sobre Comportamentos Suicidários, no Luso, e um trabalho sobre a obra “O Retrato de Dorian Gray” de Oscar Wilde a convite da Ordem dos Médicos no início do século, em Lisboa!

Também nesta linha de plasticidade e recuando no tempo, numa outra apreciação angular do seu trajeto de interesses, independentemente dos temas preferenciais já mencionados, há na década de 70 uma atração pela História da Medicina, com textos sobre Egas Moniz (1975) e Elysio de Moura (1978). No Conselho Médico-Legal e na Psiquiatria Forense em geral teria protagonismo relevante não só como perito relator em pareceres técnico-científicos mas também como elemento que fez a “ponte” com o Instituto de Medicina Legal de Coimbra na década de 80 perante nova legislação. Ulteriormente ocorreriam incursões em áreas fora dos seus campos de eleição mas que terá assumido como estimulantes a novas pesquisas e a novas reflexões. Vejamos alguns exemplos: Sexualidade (1987), Eutanásia (1992), Ética (1994), Relações familiares ao longo do ciclo de vida (1995), Envelhecimento (2006) ou Catástrofes (2007)…

Aproximando-nos do fim, permitam um brevíssimo afloramento intimista. Adriano Vaz Serra era um homem de família e prezava os laços de amizade, aliás, a este propósito, jamais poderíamos esquecer o entusiasmo pelos estudos de coping e família da década de 90.

Professor de características perfecionistas, tinha uma preocupação pela pontualidade ao minuto e ficava impaciente com qualquer atraso. Se moderador de uma Mesa Redonda num congresso em que o início tardava por qualquer razão, desabafava baixinho, mas de forma audível: “Se não começamos, não acabamos”.

Com uma ligação especial ao transcendente, posicionava-se como um católico praticante disponível para ajudar em diversas iniciativas de impacto social, exemplificada no protagonismo na Associação de Defesa e Apoio da Vida. Dentro das suas intervenções cívicas destacou-se ainda o apoio público a Jorge Sampaio nas suas campanhas para a Presidência da República em meados da década de 90 e no princípio do século XXI.

Adriano Vaz Serra gostava da condução automóvel, jogar ténis e de ouvir árias de ópera. Era um apreciador de pintura. Nadir Afonso, o flaviense, um dos seus preferidos. António Macedo, o pintor portuense, faria o seu excelente retrato com insígnias doutorais para juntar na Biblioteca do Serviço ao quadro de Elysio de Moura de autoria de Artur Bual.

Adriano Vaz Serra não era uma pessoa distante, ainda que alguns tal pudessem imaginar. Uma certa timidez de homem contido e recatado, poderia franquear-se com a autenticidade do contacto ou, às vezes, tão só com um mero sorriso. Corria um gracejo, do seu conhecimento, acerca da sua última escala o “23QVS”: E porque não “23 Questionário Vaz Serra” em vez de “23 Questionário de Vulnerabilidade ao Stress”? A resposta   estaria aliada ao seu pudor. Vingou apenas a curiosidade e a coincidência.

O sentimento da compaixão, se houvesse dúvidas, era bem observado, por exemplo, quando lidava com o Sr. Ventura Rufino, o nosso despachado lavador de carros e homem de recados, ou a D. Candinha Loureiro, a sempre-menina de tranças e laçarotes coloridos, pacientes desde longa data internados no Serviço de Psiquiatria, muito acarinhados por todos.

Como já referimos, Adriano Vaz Serra era estimado por muitos colegas quer académicos quer hospitalares. O mesmo se dirá dos senhores enfermeiros e outros membros do Serviço, desde secretários a auxiliares, desde assistentes sociais a psicólogos ou terapeutas ocupacionais… Esse sentimento de estima ia muitas vezes para além do campo estritamente profissional. Alguns pertenciam mesmo ao núcleo de proximidade: os amigos. São muitos, alguns estão aqui presentes neste grande auditório dos Hospitais da Universidade de Coimbra. Não precisamos de os nomear, eles sabem muito bem a quem nos referimos. Infelizmente, alguns já partiram e deixaram saudades.

Sobre as relações interpares, não nos recordamos de episódios de ira ou comportamentos desabridos. Era um diretor solidário para com o Serviço. Por exemplo, aquando da crise de Timor e perante a comoção geral, dos apelos ao vestir de branco e ao simbólico acender de velas em pleno hospital, esteve connosco. Às unidades eram cometidas e autorizadas iniciativas diversas, sob o lema “liberdade e responsabilidade”: sessões musicais, exibição de filmes, exposições de bordados e pinturas e outras atividades culturais… Adriano Vaz Serra convivia regularmente com os seus colaboradores. Lembramo-nos dos muitos Congressos do Serviço e até dos “Ralis Paper” nos anos 80/90 onde participou com entusiasmo…

Mostrando mais uma vez a sua generosidade e o seu bom coração, em 2010, no ano da sua Jubilação, aceitaria incorporar o Conselho Consultivo da Associação Recriar Caminhos, uma instituição de apoio ao desenvolvimento vocacional, formação e inclusão de pessoas com esquizofrenia.

 

Excelências

Prezados Familiares e Amigos do Professor Doutor Adriano Vaz Serra

Prezados Colegas, Senhores Enfermeiros e demais Profissionais de Saúde

Minhas Senhoras e Meus Senhores

Honrados por vos dirigir estas palavras sobre Adriano Vaz Serra, neste dia de 18 de setembro de 2020, temos a plena convicção de que muitos dos presentes, e outros que não puderam comparecer, nos acompanham nestes retalhos da vida do cidadão, do psiquiatra, do docente, do pensador.

Perante os ventos fortes que ora atravessam a Psiquiatria, ouçamos as palavras sábias e sempre actuais de Adriano Vaz Serra: “Em Psiquiatria, a clínica tem e terá perenemente uma importância decisiva. Só se conseguirá compreender a vivência humana interrogando-a, examinando-a, seguindo-a, discutindo-a”.

Nosso querido Mestre, nosso querido Professor Adriano Vaz Serra: Felizmente que muitos dos seus discípulos saberão respeitar o seu legado e a sua memória. Bem-haja por tudo, caríssimo Amigo!

Muito grato a todos.

Tenho dito.

 

Carlos Braz Saraiva

Coimbra

Auditório dos Hospitais da Universidade de Coimbra

18 setembro 2020