Fernando Namora e o estetoscópio da alma

De maleta na mão atirou-se à “montanha nua e cinzenta” pelas “veredas do diabo”,  que de rompante saltava aos caminhos. Que estas coisas demoníacas estão fora e dentro é sabido. Talvez alguém as alevante, por inveja ou mau olhado, mas outras larvam como fogo nas entranhas, sabe-se lá de onde vêm. O sofrimento que não se vê, mas sente-se. Fernando Namora logo se transmutou muito além de mero esculápio aprumado e bata composta. Confessor sentimental, cúmplice de dores, parceiro de secretismos, cedo se firmou também em artes quase divinatórias. Essa sabedoria do não dito, das mãos, dos gestos, dos olhares. Também do vento, do sol, da lua, do tempo.

“Chegou o novo médico”. Passa palavra. Acendem-se a curiosidade e a desconfiança. Que conhecimentos trará? Sulfamidas, arsénio, iodo, ventosas, emplastros, sinapismos, hóstias, tisanas? A disputa com bruxos e curandeiras logo saiu a terreiro para o testar. A prova das provas. Ou ganhas ou perdes. Ou santo ou coveiro. Que frequentemente há pressa nessa catalogação assim dicotómica. Mesmo uma crueldade da parte de homens e de mulheres, que disso falou com mágoa.

Naquele dia defrontou-se com o desafio malicioso da curiosa dos partos, a comadre, derrotada na hora pela ineficácia e pela impotência de melhor fazer, ainda que invocadas todas as santinhas: “Se quer fazer alguma coisa, senhor doutor, saiba que a criança está nas nalgas. Está presa no osso da rabadilha”. Eis o cenário sem cor: “Gemidos, silêncio, o morno das respirações, uma luz vacilante e fúnebre de azeite”. Suores e moscas. Mulheres de negro. Alguém cansado come pão bolorento com azeitonas e sal, logo seguido de uma bilha de água pelas goelas abaixo. Toda a gente está medrosa e expectante. Muitas conjecturas se fazem sobre o que está para vir. Contudo, a ferros se fez um final feliz. E assim saíu o médico triunfador para espanto daquelas gentes das fragas e lugares ermos.

É, pois, com a “História de Um Parto” que o médico Fernando Namora, aos 24 anos, começa os seus relatos em Monsanto, por alturas da II Grande Guerra, nos “Retalhos da Vida de Um Médico”.

Certamente é uma assunção comum: a prática da Medicina permite uma peculiar mundividência. Das chagas do corpo e dos padecimentos da alma. Das misérias e das grandezas. Dos ódios e dos amores. Um enriquecimento filosófico e espiritual que alguns, inspirados pelos sopros da criatividade, conseguem transpor para a escrita. Um dom.

Das inquietações interiores do médico beirão se percebe quão reconfortante é o “agasalhar com uma palavra afável”, desta força poderosa quando acompanha um gesto de afeto, como descreve em “A Prima Cláudia”. Partindo da família para o universo, o médico desnuda-se ao mundo. Exibe essa pequenez da não-omnipotência. Afinal, cura, salva, mas é humano. Não sabe tudo. Esconde os tratados e as folhas de manuscritos.

Das crianças à deriva, pressente-se a compaixão, retratável em “Os Dias de Vento”. Como o menino selvagem que vinha almoçar ao balde dos restos, chamado de mariola e velhaco, no preconceito de súbitos ajuizares. Esquivo, fugidio, talvez recomendável fosse alguma espionagem para ganhar a confiança do puto. E a sua mãe a morrer de pneumonia, ao frio, sem que ninguém soubesse. Mas que força para aqueles desvarios do garoto? Que irrequietude a das pedradas à cabra e aos vidros, que se suspeitavam? Que raio de linguagem de procura de ajuda? Tarde se acudiu. A doença requeria calor. Com a mãe a agonizar no hospital, ficara o gaiato deitado nas escadas, cá fora, ao relento, gelado. O incêndio da cabana, na madrugada a seguir à morte, terá sido talvez a mensagem de que pobre e miserável nem de casa precisa. Ou seja, um bicho. O rapazola que não provou “da reserva de rebuçados na gaveta”. E lá vem novamente a inquietação: “Ainda hoje medito no sentido desse fogo”.

Em “Reputação”, o autor refere-se à importância do que possam pensar a seu respeito as gentes e os colegas do mister. Assunto que aliás revisitará noutras passagens. Seguramente que em zona rural a imagem colhida e interpretada dos saberes e habilidades do médico alcança uma gigantesca magnitude. Aquilo a que se chama fama. Mas mesmo entre clientelas poderosas, pessoas de teres e haveres, que servem hospitaleiramente petiscos à rico de “vinho do Porto e ovos com presunto”, o desfecho pode ser fatal. Foi o caso. Quem mandou o droguista mexer na bolinha negra do garoto? “Não vá o sapateiro além da chinela”, diz o ditado. É de aceitar o caso depois do acontecido? E a culpa, se correr mal? Como se lida com essa tortura, esse ferrete que persiste para lá da pele? É que o carbúnculo mata mesmo!

O nome afamado associava-se frequentemente a adornos de estilo característico. Poses empinadas e tiques de poderes. Nas falas de um colega, em tom crítico: “Ao menos trouxesse um chapéu na cabeça”. “O médico é um ornamento público”, voltou a dizer. Em “Cardos, Cardos na Floresta” refere-se aos colegas que prescrevem o mesmo receituário mas com outras denominações, indo ao encontro das crenças dos pacientes e famílias, explorando expectativas de cura. Em vários momentos da obra é descrita, com uma certa amargura, o descabelado saracotear de médico em médico, muitas vezes com omissões ou mentiras, mormente quando pelo meio surgem cirandas por montes e vales na esteira das bruxarias. Perpassa uma sentida e explícita deslealdade.

Ao longo dos textos, aqui e além, entranham-se melancolias, por vezes  comparadas à “cor das folhas mortas do outono”, tristezas “sem flores, sem lágrimas”; ou, noutro passo, a confissão dos “dias em que a melancolia chove dentro de nós”. Por vezes, abre-se a porta do negrume de mansinho. Pelos trilhos do desespero alguns infelizes terminam em suicídios. Disso dá fé. Por exemplo, em “Um Homem do Norte”, o òrfão beirão, o “galego” de trabalho, terá chegado a pedir “a pastilha do Hitler” e mesmo sussurrado o desejo de “morrer na horta”. Assim se finou o coitado do homem, enforcado “num pedaço verde do Norte”, como anunciara. Antecipando o trágico porvir de renúncia, essa boa alma já tinha distribuído pelos pobres da terra “o azeite, o vinho, as batatas”. Quis partir com alguma paz e a esperança do perdão.

Das necessidades básicas à João Semana, nem sempre entendíveis por terceiros, apresenta-se como um mortal com família que requer proventos. Em “Meia Dúzia de Histórias Pitorescas” confessa a perplexidade do não merecimento imediato dos cinco escudos da parte do atormentado e alcoólatra guarda-rios na ânsia da receita da “regra infalível na arte de não ter filhos”. Um desgraçado. E mais adiante lá cogitou outra vez sobre o que deverão pensar as pessoas: “o médico é um sujeito milagroso e otimista, que vive de honrarias, que não tem estômago nem família”. Como se não houvesse um aguçado sentido do dever, de dia, de noite, por serranias, às vezes só alcançáveis de burro. “As chamadas de noite são um pesadelo… É noite perdida”; e logo “gozar a fama de dorminhoco… insónia desde os 18 anos”. Que coisa! Estes suplícios noturnos quando vindo de ricos realçam amiúde a doença revestida de espavento; ao contrário, se vindo de pobres, expõem os exageros das dores e dos incómodos até ao quase inverosímil. Contrastes e contextos comunicacionais. Teatro da vida, teatro da doença.

Como era de esperar, os ciganos aparecem nos seus retalhos. A “gente que vivia à parte do mundo”. Malta de dores, malta sofrida. A quem cobrara os cinco escudos da consulta, essa terrível lembrança do trabalho de dentista, “dinheiro que me sabia a sangue…; era o pão que eles tinham deixado de comer, era a camisa… ”. Mas foi precisamente no seio deles que um dia foi presenteado com uma “Lição de Humanidade” quando uma vez lhe deram “uma manta para cobrir as pernas” depois de uma chuvada e o aconchegaram com “pedaços de toucinho e presunto… o melhor bocado” e uma “laranja escondida na saia”. Gentes das quais se despediu, “de olhos rasos de água, acenei-lhes até ao fim”, quando partiram de caminho para a raia.

Barbeiros, endireitas e curandeiros irrompem sempre no horizonte. Um dos exemplos reporta-se a Penha Garcia, “povoação mesquinha de duas mil almas” que albergava seis médicos e cinco curandeiros. Mano-a-mano havia um combate diário pelas clientelas quer de Portugal quer de Espanha, na medida em que nestas andanças das crendices a fronteira é bem porosa. Os curandeiros mais afamados eram ardilosos ou alardeavam a sabedoria do feitiço. Dos médicos e da esperança da cura das maleitas, volta meia volta lá se ia a Espanha aos Raios X. Como desabafa em “Mais Curandeiros”: “O doente nunca é fiel ao seu médico ou ao barbeiro”, mesmo ao de Alcafozes, especialista em sangrias, o senhor Potrinhas, homem afamado em bronquites e tido como milagreiro, que prescrevia seiva de pinheiro com mestria.

Quando o sino da aldeia toca à chegada do médico quase sempre anuncia dores de alguém muito apoquentado. Algumas são “prenúncio de enterro” e, portanto, o lamento inicial de estar azedo por essas chamadas fora de horas esvai-se. Todavia, a irritação pelo aparato dos aldeões vem à flor da pele. Desprezo, perda de sorriso… “A minha reputação sofreu mais um abalo”. Cansado “com os rins esfacelados das odiadas cavalgadas”? Um homem não é de aço. Mesmo um médico da província.

A ligação à natureza é intrinsecamente visceral. Também os animais ocupam esse universo. Para lá dos equídeos, poderia ser um gato bravo ou os suínos do velho César, que deles se despedia amaciando-lhes os lombos, “limpando os olhos de comoção”, como relata em “Um Conde na Ilha Fria”. O homem que “sempre que descia à vila, vinha insultar-me pelo roubo de cinquenta escudos que lhe pedi pela operação”. Que desconforto! Mas despojado assim para contar a história…

Em “O Influente” assume-se deliberadamente crítico, talvez mordaz ou sarcástico, quanto a bajuladores e oportunistas sociais à espreita do lugarzinho no mundo da política, andarilhanças desses “podres da engrenagem” da cidade. O Dr. Sousa, estudante que também passara por Coimbra, que “subiu na vida… corrupto… as algibeiras não estariam bem calafetadas”. E mais retrata a personagem: “O homem das meias verdes… o das unhas de luto… de coco enterrado e a fumar charuto”. Parece haver clarões de raiva e desilusão. O mesmo quanto à vida, esse “abismo insondável”, confissão em “O Canudo e a Estátua”.

Retalhos curiosos versam sobre o que designa por “empalamados crónicos”. Isto é, os doentes dos achaques que não desaparecem ou que se transformam. É o caso da Natália, “A Mulher Que Engolia Alfinetes”, quadro clínico que iria sangrar-lhe a paciência. A rapariga queixava-se de um alfinete-de-ama espetado na garganta. Apareceu acompanhada da tia, a dona Cândida, mulher severa, mandona e vigilante, apesar das “juntas emperradas”. “Autoritária e boçal, no apego àquela cisma” porque outros médicos se tinham enganado, dizia emproada. Mas o que é certo é que a cachopa não tinha nada de anormal na garganta. E como meter-lhes isso na cabeça se a convicção mais do que a impressão estavam ali para durar? Foi “um mandrião, um chulo… Mas lá tocar guitarra era com ele!… pôs-me o alfinete no fundo da chávena…”. Afinal, havia uma história de sedução para contar sobre um cliente da hospedaria, um sacripanta e poeta para as cantadeiras de fado. A tia, mulher de peito feito, frisava que houvera feitiço na coisa. Então, certamente seria precisa uma manobra espetacular para as vergar. “Vou provar-lhes que um alfinete de-ama, mesmo com todos os feitiços, não pode escapar a um exame radioscópico”. Preso o alfinete, de empréstimo na hora pela tia, posto com adesivo no pescoço da rapariga, poder-se-ia comparar o antes e o depois. Os Raios X não enganariam e as conclusões sobre o põe e o tira também não. Qual quê! A tia só ficou semi-abalada na versão do bruxedo e a sobrinha logo avisou para se acabar com o palavrório porque continuava a sentir o malvado do alfinete na garganta. Ao fim da tarde, numa chalaça sobre tal bizarra consulta, alguém sugeriu que era essencial extirpar o mal como se fora um dente. É assim que um colega arguto e com calo na matéria, numa consulta posterior, afirmou em voz grossa de forma categórica: “Creio que a senhora tem razão. Há aí qualquer coisa. Vamos operá-la”. E logo depois foi encenado o espetáculo cirúrgico, a “comédia”. Máscaras, laringoscópio, tesouras, pinças… Um cheirinho de anestesia, pela rama. Duas enfermeiras perfiladas. Uns coágulos de sangue para exibir um lampejo de autenticidade…

Já com a tia presente no despertar, floresce o ar triunfal do doutor: “Tudo acabado. Está finalmente livre do alfinete. Aqui o tem. Parecia um caranguejo agarrado à sua garganta”. Responde a tia, eufórica: “O seu colega é um médico a valer, não desfazendo… O nome dos dois há de ir para os jornais”.

Após uns tempos de silêncio, a rapariga voltou a aparecer. Desta vez engolira um osso de carneiro. Uma malvadez do guisado. Soube-se entretanto que andava numa fase de tristeza, descoroçoada de tudo, já ninguém lhe perguntava pela doença… Mas na dúvida sobre se haveria no hospital algum ossinho a jeito, a tia, mulher despachada, desembrulha com ar ladino,  discretamente, um pacotinho: “Trago aqui um osso de carneiro”. No fundo, no fundo, histórias de paixões! “Case-a, case-a, minha senhora”.

Eis Fernando Namora que contra simples resfriamentos ou males ruins gladiou. O médico que se soube munir do estetoscópio da alma. Na menina recém-nascida, puxada pelos seus braços, expõe-se o dia e a noite, a alegria e a tristeza: “Chorou o choro do triunfo e de mágoa de quem se abre para a vida”.

 

Coimbra, 8 de dezembro de 2018

 

Carlos Braz Saraiva