A loucura dos normais

Uma vez, num programa de rádio que tinha o nome acolhedor de “O Importante é Poder Conversar” – a propósito de uma história que eu escrevera, “O Segredo do Soldado”, seleccionada para leitura radiofónica –, fizeram-me uma daquelas perguntas que entorpecem o corpo e provocam um nó na garganta: “Afinal, o que é ser psiquiatra?”. Depois de uns volteares meteóricos pelo pensamento, lá escapei à fórmula canónica mas insossa de falar dos loucos e dos normais. Preferi antes aquela do homem expectante à “janela das almas”. Meditabundo, inclinado, sôfrego de tudo e de nada. Que alguém clama capaz de grandes feitos. Assim como um feiticeiro…

Existe um privilégio – que há quem chame de sabedoria – nessa contemplação, nesse arrebatamento. Estético, sublime, espiritual. Também dorido, porque lá estão o desalento e o desespero. A relação entre um Eu e um Tu é sempre muito especial e intensa. Dir-se-á gratificante. Preenche-nos. Engrandece-nos. Trata-se todavia de uma visão micro, enclausurada, que não alcança outros horizontes onde está o Ele. Por isso, as maiores perplexidades surgem quando subimos mais alto e olhamos quase além do horizonte. Quando percebemos que deixamos o corpo tangível e já estamos na fronteira das ciências humanas. De outras realidades sociais, de incomensuráveis padecimentos que ultrapassam o espaço do nosso gabinete, o Eu-Tu, analogamente, o nosso sofá confortável junto a um cestinho de tâmaras e um cálice  de Porto. Será possível ser-se psiquiatra só acreditando no cérebro químico? Nos átomos e nas moléculas? Que tudo se resolve na consulta dos dez minutos e com uma caixa de comprimidos?

Vem isto a propósito de contradições e de crueldades. Das que sendo de sempre, são precisamente por isso de hoje. Dos jornais se diz que 1% dos gastos em armas de guerra daria para matar a fome do terceiro mundo. Então, o que falta fazer? Não haverá loucura em tanta normalidade? A questão do normal é das mais complexas. Um homem com um casaco arco-íris numa festa de janotas aperaltados, de casaca, bengala e cartola é anormal? Uma mulher meia desnuda que se passeia pela baixa da cidade, com uma serpente a adornar os ombros e o busto é anormal? Nunca é demais recordar. Hitler foi eleito pelos alemães! Prometeu riqueza num Império de raça superior, mas acabaria por trazer a morte e a derrota final, depois de se dizer traído pelo próprio povo, conforme ficou claro durante a batalha de Berlim em 1945. Mas esteve mais de 10 anos no poder… Na verdade, é a maioria que detém essa força imperial de determinar o que é normal ou anormal. Às vezes de forma curiosa. De chamar excêntricos aos ricos e  malucos aos pobres. De chamar narcisistas aos ricos e  psicopatas aos pobres. No tempo da Revolução Francesa bastava uma dezena de maleitas para o catálogo da insanidade mental, agora são precisas centenas. E todavia…Cá estão as outras loucuras de que ninguém fala!

Eis uma experiência e uma reflexão inesquecíveis. Numa viagem que fiz ao Rio de Janeiro, nos anos 90, tinha havido pouco tempo antes o massacre da Igreja da Candelária. Recorde-se que seis crianças foram selvaticamente abatidas a tiro nos degraus daquele templo por presumíveis agentes da polícia brasileira. Certamente com protecção implícita, ao menos, de outros poderes. Tudo acontecera, num toque de ironia à entrada da casa de Deus, a quem Antero de Quental chamara de “distraído”. Os media fizeram eco dos acontecimentos e logo avançaram que seria obra dos “esquadrões da morte”, um grupo de agentes que sempre discretamente estariam disponíveis para fazerem o bem e portanto limparem todo o mal do Rio de Janeiro. Como cavaleiros da justiça. Como juízes supremos. Após dois anos a clamar inocência, o polícia Marcus admitiria o assassinato em Tribunal. Aqui chegara Wagner, um dos miúdos sobreviventes. Que contara que fora despejado num carro e sentira o frio de uma arma apontada à cabeça ao mesmo tempo que ouvira a sentença: “Vou estoirar-te os miolos”. Mas oito balas não chegaram. Agora é testemunha incómoda. Entrou de óculos escuros, boné de “basebol”, gabardina, debaixo da custódia de 20 polícias. Assim não seria tão publicitado a mais olhos assassinos e talvez escapasse de um novo atentado. Por duas outras vezes tentaram matá-lo depois do massacre. Afinal, ele tinha o sinete dos sete fôlegos, das sete vidas. Protegido pela Amnistia Internacional, viajara da Suíça onde estivera a fazer reabilitação de uma paralisia provocada por uma bala alojada na coluna. Wagner era um dos tais putos como aqueles muitos que circulam pela cidade. Especados à porta ou à montra dos restaurantes, ansiosos pelas sobras do rancho dos comensais – da gente gorda – que se atiram com denodo ao rodízio de carnes. Que os empregados – menos famintos – pressurosamente lhes levam. Ou não sejam os rapazes os guardiões do negócio. Cá fora, como soldados que impedem a entrada de arruaças. Que afastam outros menos respeitosos. Uma simbiose que uns dizem perfeita. Os ricos dão esmolas e os pobres recebem. Os ricos continuam ricos e os pobres continuam pobres. Os ricos ficam com os confortos terrestres e os pobres esperam pelos bens celestes.

Anos antes a portuguesa Ana Filgueiras, fundadora do Movimento Nacional de Meninos e Meninas da Rua e dos Centros de Recursos Integrados de Atendimento ao Menor, havia perguntado a um menino do Rio de Janeiro, que lhe estava a engraxar os sapatos, se ele não tinha medo de dormir ao relento; ao que ele respondeu: “Do Funabem, do carro que vem à noite, pega na gente e leva para prisão”. Esta confissão desconcertante – sobre aquilo que toda a gente sabia mas não queria saber – acabaria por despoletar a procura de meninos da rua por esta verdadeira missionária dos tempos modernos. Assim conheceriam uma “mãe”, uma casa, um afago. Revoltada pela criminalização da pobreza – assunto relativamente tabu das sociedades com grandes assimetrias e injustiças sociais – que decorria de uma possível leitura do Código de Menores, empenhou-se na publicação do Estatuto da Criança Adolescente. Declarando desassombradamente: “Se eu tivesse 13 anos, procurasse emprego e ninguém mo desse, com a mãe doente, claro que roubava; se você não tem nenhuma outra maneira de ajudar a sua mãe e os seus irmãos a não morrerem à fome, neste caso o crime é não roubar”.

Portanto, aí estava eu no Rio, a cidade do Corcovado, do Pão de Açúcar, da Baía de Guanabara, a lindíssima Cidade de Deus. Vista de cima é mesmo a cidade maravilhosa mas cá em baixo, cá em baixo…Cá em baixo há pessoas. E, como acontece quase sempre com as minhas viagens, mais uma vez fui ao encontro das gentes.  Não é possível conhecer uma cidade sem falar com as Marias dos mercados ou os Zés dos táxis. Foi assim que perguntei a um destes homens do volante sobre a matança dos meninos da rua. Queria ouvir a genuína voz do povo, a voz sem tibiezas, sem papas na língua. Do político popular. Que é a que mais importa. E logo me disse, meio perplexo e meio irritadiço, naquele linguajar dolente e meloso, do português com açúcar, que tais crianças não eram mais crianças, mas antes delinquentes perniciosos à sociedade, mergulhadas em tudo o que é ruim e em todos os vícios. Que são malfeitores. Que todo o cuidado é pouco. E logo ali dissertou sobre meia dúzia de histórias tenebrosas daquelas que metem navalha e tudo, que logo me deixaram um amargo de boca e uma frialdade na espinha. Mas lá me atrevi devagarinho a que me falasse das alternativas à prisão ou ao “desaparecimento” sistemático dos putos. Aí, aquele Zé do povo  marcado pelas corridas às favelas dos morros e à baixada fluminense, torceu-se no banco, deu-me uma espreitadela e quase rebentou: “Aí cara, sabe que só de moleque se faz coisa boa?”

Tentei entender a mensagem. Já eram grandes demais para viver. Saí para o calçadão da alegria e da cor de Copacabana, azamboado pelo contraste com a roxidão do meu peito. Soube que a Ana Filgueiras destruiram-lhe o Centro, ameaçaram-na, perseguiram-na, tudo lhe chamaram, desde instável a megalomaníaca. Até para a solidariedade é preciso afoiteza e coragem. Mesmo que os normais digam que os outros são loucos!