“Não” à eutanásia, “não” ao sofrimento. Será que tudo isto é possível simultaneamente?

O Homem pós-moderno apropriou-se do corpo. Acha-se o seu dono, para discordância absoluta das religiões. Também se manifesta mais egocêntrico e mais narcisista. A partir da ilusão da percecionada omnipotência pretende definir os limites daquilo que entende por própria dignidade, fora das normas tradicionais que vêm de gerações, impostas pela cultura dominante. De certa forma, assume-se como portador de um grito de liberdade.

A eutanásia é inequivocamente reflexo de todas estas inquietações, mais do que do espelho Eu-Eu, também do Eu-Tu e do Eu-Outros, onde está a Sociedade. Trata-se de um assunto ora destapado de certos tabus, dos que mais gera crispações, clivagens e frémitos emocionais. A questão central parece ser a que se prende com os casos clínicos de certas doenças terminais de mau prognóstico, nos últimos meses ou semanas de vida, acompanhadas de violentas dores ou insuficiência respiratória atroz, designadamente do âmbito da oncologia ou da neurologia. A medicina atual tem recursos poderosos para mitigar tais sofrimentos. Mesmo admitindo situações anómalas em que não é exequível a eliminação de certos padecimentos, justificar-se-á, a meu ver, um imperativo de boas práticas que exigirão a que consecutivamente se escrutine, a nível do chamado exame mental, o que, na verdade, é expectável da parte do doente. Até porque a ambivalência, esse constructo do querer-não querer, é dinâmica, não estática, como se fosse um cursor de vai-e-vem. Se as ideias de morte fazem parte naturalmente da condição humana, já as ideias de suicídio, impregnadas de um plano mais ou menos detalhado para o levar a cabo, correspondem a uma subversão do instinto de sobrevivência, frequentemente enquadradas em profundos estados depressivos ou melancólicos. Qualquer psiquiatra clínico já consultou pessoas doentes que verbalizaram ou sinalizaram essa caminhada pelo trilho da ideação suicida. Mas, seguramente, que também constatou que a não persistência da dilacerante ambivalência suicida é excecional; principalmente se associada ao sentimento de não pertença. Ou seja, não é comum a coerência inabalável ao longo do tempo nos estados depressivos quanto ao desejado para o futuro. O que o doente pensa e sente hoje não é necessariamente igual ao que pensará ou sentirá amanhã.

Desde 1886 que o suicídio não é crime em Portugal. O mesmo não acontece, hoje em dia, em 24 países do mundo (Cfr. “Manual de Psiquiatria Forense”, Ed. Pactor, Lisboa, 2017, in Carlos Braz Saraiva e Jorge Costa Santos, pp. 480-482). Como se compreenderá, existem interfaces entre a eutanásia e o suicídio assistido. O caso amplamente publicitado do galego Ramón Sampedro, tetraplégico desde os 25 anos, num acidente no mar, e que se suicidou em 1998, aos 55 anos de idade, com a ajuda de uma amiga viria a reabrir um aceso debate em Espanha. O impacto do caso tornou-se mais exponenciado com a transposição para o cinema, em 2004, no filme “Mar Adentro”, de Alejandro Amenábar, onde Javier Bardem representou brilhantemente o papel do desafortunado paciente.
Reconheço as minhas dificuldades, fraquezas, incapacidades (ainda sou do tempo dos psiquiatras que têm dúvidas…), em opinar cabal e definitivamente apenas para situações raríssimas que carecem de apurados escrutínios persistentes e continuados do ponto de vista psiquiátrico. Todavia, se posta a pergunta segundo o terrível binário do “Sim” ou do “Não”, a minha resposta pende para o “Não”. “Não” à eutanásia, mas também “Não” ao sofrimento. Será possível encontrar a fórmula certa? O debate continua.

 

NOTA: Texto também disponível no Facebook.