Depressão e suicídio: da dor à fuga

A Depressão, entendida como uma síndrome, é mais do que uma perturbação do humor. Referimo-nos também a uma doença de ritmos, de tédios e de vazios persistentes. Alguns doentes mais circunspectos e reflexivos conseguem mesmo descrever as suas inquietações, as suas mágoas, os seus medos. Outros mostram a exuberância da linguagem corporal. Todos, por norma, reportam, explícita ou implicitamente, as repercussões nefastas sobre o plano dos afetos, onde estão as esferas familiares, profissionais e sociais. A Depressão é uma doença de rebate sistémico, mais do que o Eu-Eu e o seu espelho. Assumir-se-á como uma das mais incapacitantes do século XXI, segundo a Organização Mundial de Saúde. Naturalmente, estamos a falar do que se convencionou chamar de Depressão Major.

Do ponto de vista epidemiológico, talvez cerca de 800 mil portugueses possam estar deprimidos, porventura considerando todas as suas variantes, unipolares, bipolares, distimias… Um tema teórico interessante é saber se há depressão ou depressões. Na verdade, a apresentação do quadro clínico tem matizes. Dentro da diversidade das subtilezas há alguns sintomas nucleares: humor depressivo e incapacidade para voltar a sentir prazer. Numa visão simplificada, cursam ainda, pelo menos há duas semanas, insónia, lentificação, fadiga, desconcentração, indecisão, variação diurna do humor, anorexia, perda da libido e outros sintomas de cariz mais cognitivo. Entre estes, pessimismo consistente, sentimentos de auto-desvalorização ou de culpa, ideias de morte passiva ou mesmo ideias de suicídio. A maior parte dos quadros depressivos dura menos de um ano, mas cerca de 15% manterão os sintomas por mais de dois anos. Hoje conhece-se melhor o risco de recorrência pelos trabalhos de catamnese ao longo do tempo: 30% a 10 anos e 60% a 20 anos. Estes números não nos podem deixar indiferentes. Precisamente por isso, o incremento da literacia em saúde mental e as intervenções na área da psico-educação são desejáveis. Quanto mais precocemente for diagnosticada a Depressão Major mais cedo se poderá intervir. A este nível, é desejável a otimização de competências da parte dos clínicos, designadamente nos cuidados de saúde primários, no sentido do apurar do diagnóstico e de um melhor manejo dos psicofármacos. Também de sublinhar a necessidade do treino de técnicas de comunicação e entrevista do doente com ideação suicida. Referimo-nos ao imperativo de ultrapassar o modelo médico tradicional focado primordialmente no sintoma e ir mais além, às profundezas da suicidalidade e seus esquemas mentais.

Múltiplos trabalhos realizados em diferentes povos e culturas, de diversos continentes, através da metodologia das autópsias psicológicas, confirmaram a existência de psicopatologia em cerca de 90% dos suicidas, com predomínio de quadros depressivos, quase sempre em mais de 50% dos casos. Talvez 10% dos doentes afetados por Depressão Major severa que foram internados em Unidades de Psiquiatria possam evoluir para o chamado “modo suicida” da Escola de Beck; constructo que alguns autores do Instituto Karolinska talvez preferissem designar de “processo suicida”. Estamos a falar obviamente de um trilho de desconforto de memórias e vivências dolorosas. Por vezes reemergem traumas de infância ou de adolescência. Estando a capacidade de relativização e de desdramatização prejudicada, o sofrimento adquire a força de uma “dor psicológica” intensa, como postulou Shneidman, o pai da suicidologia. Esta característica nodal é acompanhada de uma certa radicalização, um desejo de cessar a consciência, a perda de “horizontes”, uma insatisfação pela falta de necessidades básicas, entre elas a de ser amado, uma atroz solidão ou uma desesperança que se transformou em desespero. Um “efeito lupa” agiganta algumas das distorções cognitivas, como a catastrofização ou a maximização de aspetos negativos. O pensamento dicotómico, através da visão do mundo a “preto ou branco”, perturba o encontro de posturas de equilíbrio e estimula comportamentos de grande rigidez. Se associarmos a todas estas idiossincrasias certos sintomas medeados pelo temperamento, como a impulsividade ou as perturbações da identidade, ou outros mais circunstanciais, exemplificados no consumo de substâncias e álcool, então, teremos um enquadramento de um maior risco suicida. De valorizar a existência de tentativas de suicídio no passado. Esta simples compreensão fenomenológica obedece ao modelo stress-diátese profusamente citado na literatura.

Numa outra perspetiva, como acontece com frequência, os doentes com ideação suicida entram e perdem-se no labirinto da ambivalência. Querem tudo e o seu contrário. Almejam abarcar todos os cenários, simultanea e sofregamente. O viver e o morrer. Falam de “desligar”, “desaparecer”, “fugir”ou “hibernar”. No fundo, pretendem deixar de sofrer. Como se fosse possível um renascer. Mas ninguém se suicida a partir do nada, a partir do vazio. Há sempre uma história de vida, uma narrativa para contar. Quando no diálogo interno do doente irrompem sentimentos de culpa a abordagem psicoterapêutica torna-se mais difícil porque entramos frequentemente no mundo das crenças religiosas.

A existência de um plano suicida exequível através de um método potencialmente letal, se associado a uma “carta de despedida”, parece correlacionar-se com um maior risco de passagem ao acto. Ancoremos agora em fatores de risco que não podem ser ignorados. Para a Depressão Major importam especialmente: biológicos, sociodemográficos e psicossociais. Vejamos os principais. Sobre os fatores biológicos é de relevar a procura de marcadores neurobiológicos e as vulnerabilidades genéticas. Neste ponto, quanto a uma potencial suicidalidade, surgem estudos de dezenas de genes candidatos, exemplificados no gene codificador do transportador de serotonina (5HTT) e no gene recetor da neurotrofina (P75NTR). Sobre os fatores sociodemográficos, há a considerar ser homem, ter mais de 40 anos, não ser casado, viver ao sul do paralelo de Coimbra, com enfoque no Pinhal Interior e no Alentejo. Sobre os fatores psicossociais, a destacar: desemprego, não religiosidade, doença crónica dolorosa e incapacitante, perda de estatuto social e outros acontecimentos de vida negativos.

Por fim, não podendo ser exaustivos sobre os aspetos terapêuticos, um apontamento, ainda que breve, é devido à temática da bipolaridade, designadamente face à possibilidade de uma “viragem”. Essa ativação súbita com impulsividade-agressividade e agitação recomenda vigilância apertada e medicação sedativa robusta. O facto de um doente ser bipolar agrava o risco de suicídio mormente nas fases mistas. Das boas práticas terapêuticas sabe-se atualmente quão importante é o manejo do arsenal psicofarmacológico neste tipo de perturbações do humor. Uma das recomendações mais elementares reside na correta prescrição de estabilizadores do humor e não tanto o raciocínio imediato de medicar com antidepressivos ativadores perante uma fase depressiva.

O suicídio, sendo uma tragédia individual, é também um problema de saúde pública; “O mais intrigante acto do ser humano, mesmo quando cometido em público”, como escreveu Cobb, o poeta inglês.