Que Novos Rumos para a Psiquiatria e a Saúde Mental em Portugal?

O “Estudo Epidemiológico Nacional de Saúde Mental” (2013), através de metodologias implementadas noutros países, revelou que cerca de 23% dos portugueses padeciam de uma qualquer doença do foro psiquiátrico, de acordo com as classificações internacionais. Isto quer dizer, ainda que seja penoso constatar, que no seio de todas as famílias existe um doente mental. Nestes números – aparentemente perturbadores e desconcertantes – incluem-se quadros ligeiros de ansiedade e outros de maior severidade, como as depressões. Algumas dificuldades no escrutínio da colheita da informação, por aspetos conceptuais ou instrumentais, não permitiram perceber, por exemplo, a verdadeira magnitude do peso do alcoolismo ou das psicoses no nosso país. Não obstante, os dados transmitidos são suficientemente poderosos para não ficarmos tolhidos pela indiferença.

A Organização Mundial de Saúde tem vindo a alertar para um crescendo de patologias de ansiedade, exemplificadas nas fobias e nas obsessões, depressão, em todas as suas variantes, consumo de substâncias, ou seja, álcool e “drogas”, e ainda suicídio em idade laboral, associado à crise sócio-económica que grassa no Ocidente desde 2008. Um dos principais problemas apontados é o desemprego, com todo o cortejo de consequências nefastas a nível das esferas individuais e familiares. Numa nota marginal, registe-se, todavia, a peculiariedade portuguesa de que auferir salário mínimo não significa sair da pobreza; uma economia relativamente similar, como a da Irlanda, consegue pagar mais do dobro.

Havendo, portanto, uma grave perturbação nos rotineiros padrões de vida e sendo as naturais expectativas das famílias persistentemente frustradas, a desesperança instala-se, desponta o desespero e irrompe o sentimento de exclusão. Um cenário de um pessimismo atroz pode gerar a crença de que não é possível lutar contra as adversidades. Foi neste clima social de grave crise dos últimos anos que surgiram novos dados estatísticos indicando que cerca de 30% das pessoas foram afetadas, desenvolvendo algum tipo de insanidade mental.

Reconhecida a realidade portuguesa, quanto mais não seja do ponto de vista epidemiológico, faz todo o sentido um estudo exaustivo sobre a reforma da Saúde Mental. Perceber o que foi feito e o que se pode vir a fazer. Por exemplo, compreender que o envelhecimento da população irá colocar novos desafios. Um deles é seguramente o saber lidar com o isolamento dos idosos, a solidão, a miséria, as múltiplas comorbilidades. Esta inevitabilidade suscita, mais uma vez, o imperativo de relembrar que a Psiquiatria é uma especialidade médica. Não se trata de uma mera ferramenta da Assistência caritativa, embora se posicione como uma disciplina na fronteira das Humanidades. Há que recentrar a Psiquiatria na sua ligação às outras especialidades e aos cuidados primários. Neste ponto, convirá enfatizar que um psiquiatra colocado num Centro de Saúde não é sinónimo de psiquiatria comunitária. Tal escopo pressupõe robustas políticas sociais de inserção, eventualmente com o contributo das Instituições Particulares de Solidariedade Social e da Segurança Social. O trabalho em rede, multidisciplinar, teria toda a pertinência, envolvendo inclusive as autarquias. Psiquiatra, médico de família, delegado de saúde, enfermeiro, psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional, animador sócio-cultural, são bons exemplos de protagonistas. Para o efeito seria benéfica a otimização da articulação entre as diferentes entidades, simplificando processos e informação.

O foco de actuação deve estar no doente. Sendo os recursos, financeiros, logísticos e humanos, escassos – aliás, o orçamento da Saúde Mental tem sido tradicionalmente não só pouco generoso mas também excessivamente centralizador – há que os saber alocar ao essencial e ao que mais importa, em função das necessidades do doente e não de organogramas inflexíveis em exercícios teóricos. Conviria sublinhar que estamos a falar de direitos de cidadania e não de uma qualquer medida esmoler de um Estado Assistencial. A Psiquiatria pode ter um papel importante no esbater de assimetrias e de desigualdades sociais ao permitir que alguns doentes adquiram outros patamares de realização pessoal e profissional. Do mesmo modo, a possibilidade de melhoria da literacia em saúde mental e do contributo da psicoeducação poderão dar os seus frutos, na dupla perspetiva de ser válida tanto para os doentes como para as famílias.

Já foi dito e redito. Do ponto de vista da saúde mental, o modelo que deve prevalecer é o biopsicossocial, que é uma conquista desde meados do século XX. Mas vejamos dois dos aspetos mais intrigantes, pelo menos para quem exerce psiquiatria a nível hospitalar: um primeiro aspeto é o “síndrome de porta giratória” em que os mesmos doentes são internados dezenas de vezes,  ao longo dos anos, sem que os “serviços externos”, em todas as suas valências,  se revelem capazes de ir às raízes dos verdadeiros problemas dos doentes. Precisamente por isto se diz que os médicos, pressionados pelas circunstâncias ou limitados no seu raio de acção, acabam por prescrever psicofármacos simplesmente de modo a mitigar o sofrimento ou a insónia, quando o que importava sobremaneira seria ir a montante às origens sociais e familiares. Donde, as perguntas óbvias: “Onde está a ajuda? Onde está a reabilitação psicossocial?” Um segundo aspeto é como transferir os doentes rapidamente para Cuidados Continuados depois da não justificação do internamento em unidades de agudos, às vezes durante longas semanas? Afinal, onde têm estado as barreiras? Políticas, orçamentais ou burocráticas?

A nível social permanecem estigmas e preconceitos em relação ao doente psiquiátrico. A reversão desta dolorosa realidade implica trabalho sistematizado e permanente com envolvimento de muitas forças, quer da comunicação social quer da saúde pública. Não sendo uma tarefa fácil, deverá ser inspiradora de elevados princípios e valores e interpretada como uma luta civilizacional que só pode dignificar o ser humano. A Organização Mundial de Saúde, ao definir os grupos populacionais mais vulneráveis, exemplificados nas crianças, mulheres, idosos, desempregados, pessoas de baixo estatuto socioeconómico, sinaliza o caminho.

A Direcção Geral de Saúde, as Faculdades de Medicina, o Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, a Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, entre outras instituições, deverão disponibilizar-se para um incremento da colaboração com os médicos de Medicina Geral e Familiar, visando estabelecer uma formação permanente dos médicos de família, frequentemente o primeiro contacto da parte dos doentes. Na vertente do ensino, o pendor das Faculdades de Medicina deverá ser eminentemente prático no sentido de fornecer conhecimentos úteis para a atividade clínica. A ligação direta entre os psiquiatras e os médicos de família surgiria necessariamente reforçada.

Estando no horizonte o novo Plano Nacional de Saúde Mental, porfiam-se os mesmos princípios clássicos: equidade e respeito. Infelizmente ainda existem lacunas quanto à proteção ética, social, legal e financeira dos doentes mentais. Em Portugal, em alinhamento com a Organização Mundial de Saúde, pretende-se actualizar as políticas, melhorar a cobertura dos serviços e o seu acesso, promover programas de prevenção, diminuir a taxa de suicídio e recolher indicadores de controlo.

Só um esforço coletivo, pautado pela motivação, entusiasmo e reconhecimento dos seus agentes, poderá levar a bom porto a reforma da Saúde Mental que se pretende.