Mário de Sá-Carneiro, no centenário da morte por estricnina: bipolaridade, histeria ou narcisismo?

Poeta da dispersão e do labirinto, Mário de Sá-Carneiro, o menino grande, exercitou o voo para o absoluto e o sublime. Na teatralização da morte do “perdulário do instante”, quis ser o seu próprio escultor ou compositor. Alguém admiraria o “cadáver como o seu último acorde”. Uma preparação minuciosa de obra magistral que vinha de dentro, da inquietação, da fonte de incertezas. Talvez um retrato da histeria masculina. Mestre no esgrimir e na embriaguez das palavras, quis o destino arrebatá-lo no Hotel de Nice, em Paris, aos 25 anos, no sofrimento de uma morte por estricnina.

Não considerando dois poemas ocasionais de 1911 e o poema semi-futurista Manucure de 1915 (in Orpheu 2), a sua arte poética reparte-se pelos volumes Dispersão – escrito em 1913 e publicado em 1914 – e Indícios de Oiro, lavrado entre 1914 e 1916, nas bancas em 1938, em edição póstuma, por iniciativa de Fernando Pessoa.

O facto de a sua Obra ser relativamente curta no tempo permite uma leitura psíquica de minudência no sentido da compreensão do trajeto de vida. Um fio condutor creio evidente nas musas de malogro e de dúvida que sempre estontearam o poeta, no digladiar de emoções contraditórias entre o dar-se e o repelir-se, do mesmo modo que a obsessão da mágoa de ser um quase, um intervalo ou um intermédio, se repercutiu como ferida carnal na génese de estrutura neurótica, visível na luta titânica entre a vida e a morte; “Correr no azul… saltar a bruma… fartar-se até das coisas que não teve”, sempre o tudo e o seu contrário…

Depois de reiteradamente se ter despedido de Fernando Pessoa, ora na linha do comboio, ora por veneno, ora por projeção no vazio. Ou ainda numa outra carta de 2 de Dezembro de 1912: “Acho duas formas de desaparecer… a água profunda… o estampido de uma pistola”. Perante a ousadia das descrições, eis a ambivalência como dor dilacerante. Mas seria mais precisamente a atração pela queda, em poços, pauis ou ravinas, que o vai perseguir nas frequentes nuvens de roxidões.

O poeta que já se havia desencantado por Coimbra em 1911, -onde viveu três meses no Hotel Avenida, alojado no Quarto 105 com vistas para o Mondego – logo depois fugira amargurado de Lisboa, ali estava agora em Paris. Na sofreguidão da procura da luz e da cor, de brilhantes, espelhos, diademas, elmos reais, castelos e cruzes… Heráldica e mística que engrandeciam.

“O Mário continua bom… ainda não se constipou… Lá se tem ido desembaraçando em vestir-se mas ainda está atrasadote”, escreveu o pai numa carta ao seu próprio pai. O avô, sempre o avô querido, para quem enviaria o grande abraço de despedida. A 18 de Abril de 1916, oito dias antes da morte, ainda diria na última carta a Fernando Pessoa: “Escreva”.

Herói de um universo em turbilhão, tudo lhe resvala para nevoeiros de sonolência. “Ir para a cama”; curtir “febre e revés”. Mário de Sá-Carneiro sentia-se miserável e abandonado em Paris, a I Guerra Mundial troava, e recorde-se que o pai recusara financiar o Orpheu 3, ao mesmo tempo que se passeava pela Lisboa mundana com uma senhora distinta e bela. Uma outra forma de dor, uma chaga atroz que mirrava a alma do poeta.

É curioso notar que logo no primeiro poema da Dispersão, Partida, se grita ao mundo o conflito entre o Eu real e o Eu ideal, o perder-se na morte, delineada como fuga, deambulação ou balouço, com um presságio de fracasso no horizonte, onde só um talvez-amanhã existe, temas que são o mote recorrente da poesia.

A permanência da ilusão de ruína, o pressentimento de uma qualquer catástrofe e a inquietação de um alagado pessimismo originam a incapacidade para se poder, sequer, imaginar feliz, como chaga de niilismo retratável em A Queda: “…Volteiam-me crepúsculos amarelos / Mordidos, doentios de roxidão / Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim…” (in Dispersão). Fecha os olhos tenebrosos de brumas, porém, mesmo nessa vida que não tem coragem de percorrer, lá estão todos os perigos. Não se sente bem em Paris, detesta Barcelona, acredita sentir-se pior em Lisboa e assim fica isolado naquela “tristeza de nunca sermos dois” ou “de “ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor” (in Indícios de Oiro).

É então que “dormir e ancorar”, “a força de se sumir”, “viver em roxo”, passam a persegui-lo num quebranto embruxado; e é precisamente a partir de A Queda que as ideias de morte adquirem um sinal suicida. Depois de ser Herói – mas de um universo em turbilhão – tudo lhe resvala para nevoeiros de sonolência e identificando o “tombar com o vencer”, decide-se, talvez sem um pestanejo: “Olho do alto o gelo, ao gelo me arremesso / E fico só esmagado sobre mim” (in Dispersão).

Quando mineiro de respostas atrás do Eu efervescente, Mário de Sá-Carneiro se pergunta “Onde existo que não existo em mim?” ou afirma “Corro em volta de mim sem me encontrar” (in Dispersão), quer dizer que a angústia não cabe na tormenta.

Contudo, é a partir do poema Elegia que a auto-estima chega ao fundo de todos os abismos, levando-o depois, já muito próximo do fim, num só soneto, Aqueloutro (1916), a adjetivar-se miseravelmente como “dúbio, mascarado, mentiroso, incógnito, postiço, falso, covarde, bobo, presunçoso, lacaio, papa-açorda, corrido, raimoso, desleal, balofo”.

Em contraponto, na dialética do histrionismo ou da bipolaridade, desencadeiam-se êxtases de “diadema e timbre, elmo real e cruz” e cores coloridas. O violeta, o carmim, o ruivo e o roxo ligam-se ao corpo da mulher, sempre à distância de mais um sonho e inúmeros véus pelo meio. Roxa é também a morte e a insónia, vermelha a lã do leito fofo, lilás é o tempo, mas num só repente se acredita cor-de-rosa bordado a cetim. Prata, cristal, alabastro, marfim, deixam passar a miragem de “falsos horizontes” do “Ideal”, procurado em sofreguidão e euforia – “Quero depor o rei para lá me coroar” -, mas logo a seguir esverdinhado é o seu reflexo nos espelhos que o atraiem como cisternas de desassossego.

A mulher persiste longínqua como “princesa de fantasia”, que recorda arruivada ou violácea, apesar do nunca visto; quando personalizada aparece como uma das Salomés que “às serpentes doiradas dão o sexo nu a trincar”, sobre a qual traça o manto – entre uma luz que corta – e se arqueia apunhalando em estertor, a debochada. Porém, logo de seguida se interroga se de facto a seus pés não estará antes a sua alma esventrada em vez da maldita Salomé…

Referências explícitas à sua loucura detetam-se em Indícios de Oiro quando se proclama como “grande doido”, “varrido”, que no fim de pular às cambalhotas sobre um piano, esfrangalhando as partituras e tudo o mais à caqueirada – assumindo aqui um momento de agressividade para outrém – foge às gargalhadas, não pela porta, mas pelo saguão, indo para a cama, novamente, curtir “febre e revés” (in Torniquete).

O medo de viver e o medo de crescer infantilizam-no. O narcisismo surge lábil, apesar dos recorrentes “eu”, “me”, “mim”. Na contemplação das águas da escrita acha-se feio, a “grande ursa” e a “esfinge gorda” do final. As perguntas são de dorida perplexidade: “Quem sou eu?”; “Onde existo que não existo em mim?”; “Qual o meu sexo?”. Se a depressão é a “doença de uma tristeza persistente” ou mesmo um “itinerário de uma situação melancólica-depressiva”, então, a partir de determinado momento a angústia deixou de caber na tormenta. A ideia de morte ao transformar-se em sentimento de morte espevita o jogo perigoso da ambivalência suicida, do “dormir” e do “ancorar”. A formulação mental “quero morrer, quem me salva?” poderia não ser devidamente percebida. Como não foi. Diagnósticos? Do ponto de vista psicopatológico, o que se observa em Mário de Sá-Carneiro é  uma doença do Eu – embora sem a fratura ou a pulverização do Eu do esquizofrénico – com distorção da auto-imagem, dificuldade na identificação sexual, impulsividade, fantasmas de morte e ansiedade em braseiro. Bipolaridade, histeria ou narcisismo? Ou de tudo um pouco? Que importa restringir pela pequenez estes afloramentos especulativos de uma alegada patografia em contraste com a grandeza de uma escrita majestática? A obra fica. Pela imortalidade se ganhou!

Mário de Sá-Carneiro desejaria uma viagem pela morte, como apelador, daí o “fechar-se a bronze em salões roídos” e o “dormir-se” e não tanto a audácia de uma viagem para a morte, como em desesperanças afiadas clamou do “dissipar-se”, do “sepulto sob sírios” ou do “ruir-se sem Deus”.

Rei de um castelo de espelhos e fontes de incertezas, assim morreu aquele que se ditou de “grande ursa” e “esfinge gorda”, que, afinal, não sabia se era melhor finar-se de casaca ou de bibe de menino.

Como em Marguerite Yourcenar: “Se abandonou ao seu demónio ou ao seu génio”. Mário de Sá-Carneiro finou-se em 26 de Abril de 1916, por ingestão de cinco frascos de estricnina. Um dos maiores poetas portugueses de sempre, altaneiro do Modernismo, com as suas ossadas despejadas na vala comum do cemitério cinco anos depois… Ninguém as levantou. Um final de grande simbolismo para um teatro da solidão.