Se há crianças a passar fome em Portugal, pode um Estado ser psicopata?

“O opulento não sabe o que passa o esfomeado”. Esta simples frase de Montaigne, o filósofo francês do século XVI, parece ter uma gritante actualidade, até porque não é possível tapar o sol com a peneira. Estamos em 2015 e deixou de ser um murmúrio: há crianças a passar fome em Portugal! Das estatísticas se sabe hoje que mais de 400 mil crianças estão no patamar da pobreza. Não será difícil imaginar as repercussões sistémicas, quer nas famílias quer na escola ou na sociedade. Isto num país onde para não se ser pobre não basta trabalhar…

Um dos aspectos mais chocantes das histórias de vida de muitos jovens observados em consultas de psiquiatria que apresentam comportamentos de risco, como consumos de álcool ou drogas, é precisamente o que contam da sua infância. Neste período crítico de desenvolvimento é que seria esperado uma maior atenção da parte da sociedade na protecção dessas crianças ditas “problemáticas”. Mas o que comummente acontece é esta mesma sociedade que os quer severamente castigados pelos seus eventuais desvios ou desmandos não se importar com as famílias “doentes e disfuncionais” onde eles passaram a infância! Eis a insensibilidade social que decorre de escolhas onde grassa o egoísmo atroz destes ventos do neo-liberalismo sem rosto humano. Esta dura realidade coloca logo uma chuva de perguntas sobre o “quem somos” e o “que queremos”. Dito de outro modo: estamos perante um Portugal imoral? E será que isso incomoda alguém? Um Estado psicopata?

Personalidades de quadrantes políticos e ideológicos tão diversos como Adriano Moreira, Laborinho Lúcio, Francisco Louçã, afirmaram que a pobreza não tem que ser uma inevitabilidade, que, aliás, atenta contra a dignidade humana, a Constituição da República e a os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas. A própria Igreja católica veio reiteradamente sublinhar esta mesma posição pela voz do Papa Francisco, dos Bispos, da Cáritas e outras instituições.

Quando os portugueses observam que a progressão pelo mérito foi subvertida pelo alpinismo político de medíocres oportunistas chico-espertos, ou se confrontam com os recorrentes desvarios de milhões da banca e a impunidade dos seus protagonistas, com o despudor dos negócios do Estado com privados contendo cláusulas altamente lesivas para todos nós, por “estranhas” ou “secretas”, hipotecando gerações vindouras pelas dívidas atoleimadas, só podemos ficar revoltados com a magnitude da letargia de quem nos devia valer. Ou será que é o lobo que guarda o rebanho? Presumo que a resposta seja dolorosa. Não tenhamos dúvidas: a economia e a alta finança apropriaram-se da política. Como disse um filósofo: “uns milhares de finórios tomaram conta disto”.

Em remate, e voltando à pobreza infantil: De entre os milhares de milhões propalados para ali e acolá será que não há verbas para as crianças que passam fome em Portugal? Mas alguém ainda cora de vergonha?