Psiquiatria em Coimbra: declínio ou progresso?

A doença mental sempre foi incompreendida, impregnada de preconceitos e de mitos. Quando em 1889, o primeiro grande psiquiatra português, António Maria de Sena, um serrano dos sete costados, se referiu aos doentes mentais como os “esquecidos dos esquecidos” sintetizou muito da História da Psiquiatria. Aqui, mais uma vez, se vislumbrava o velho estigma e a discriminação bem retratável na proliferação dos chamados manicómios até à II Guerra Mundial. Afinal, um local isolado e longínquo para lunáticos, fora de portas como se dizia na Idade Média, onde comportamentos imprevisíveis e atoleimados não fariam grande mossa. Este aparente pragmatismo, para não apelidar de insensibilidade, seria modificado com a descoberta de novos tratamentos para o cérebro a partir da década de 50.

Agora, já no século XXI, num tempo em que, do ponto de vista epidemiológico, se sabe que todas as famílias portuguesas têm, em média, um doente do foro psiquiátrico em casa, tal questão passou a ter uma relevância incontornável. Com o envelhecimento da população facilmente se compreenderá que muitos destes doentes apresentem também outras patologias, ditas físicas, orgânicas ou somáticas. E isto é uma evidência. Barahona Fernandes, o psiquiatra-filósofo, baptizou, há trinta anos, o 6º período da Psiquiatria em Portugal: Serviços de Psiquiatria nos Hospitais Gerais. Ou seja, a consequência lógica de uma conquista civilizacional que paulatinamente vinha a evoluir desde a Revolução Francesa. Portanto, um assomo de dignidade percorrera o senso comum e chegara ao poder político. Não surpreenderá, pois, que em 1992 tenham sido extintos os Centros de Saúde Mental, criados em 1963, eventualmente lidos como uma visão diferenciadora e marginalizadora, à semelhança do que aconteceu, aliás, com outros ramos da medicina, como a tuberculose e o alcoolismo.

A recente fusão em Coimbra das instituições psiquiátricas no Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, EPE, oferece uma oportunidade singular para congregar esforços, tirar partido de sinergias e rumar de vez ao século XXI, sem ficar encalhada no século XX ou mesmo toldada pelas reminiscências do século XIX. Terá que haver um compromisso inteligente entre a economia e a ética, numa equação que coloque o ser humano no centro das atenções, isto é, a pessoa. Neste sentido, creio pertinente lembrar que a Lei de Saúde Mental de 1998 aborda no seu art.º 5 o direito do doente receber tratamento no respeito pela sua individualidade e dignidade; e que o Plano Nacional de Saúde Mental (2007-2016) visa assegurar cuidados de qualidade, proteger direitos humanos, integrar os cuidados. Claro que todos sabemos que em condições ideais os doentes mentais devem ser tratados na comunidade, conforme o art.º 3 da citada lei, mas isso nem sempre é possível por múltiplas razões, desde a inexistência de cuidadores qualificados na família, insuficientes recursos humanos de âmbito social ou aspectos de ordem mais técnico-científica. É nesta vertente que é deveras importante enfatizar o trabalho da psiquiatria de Coimbra nos últimos anos. Num breve comentário, que desejaria objectivo mas seguramente não exaustivo, recordo que à entrada do Serviço de Psiquiatria dos Hospitais da Universidade de Coimbra, no Bloco de Celas, está há muitos anos uma placa onde se pode ler “Clínica Psiquiátrica”, ou seja, um sinal de cuidados mais humanizados. Esta preocupação solidária para com os doentes seria acompanhada pelo trabalho de investigação produzido por diversas equipas, por vezes de visibilidade internacional, publicação da revista “Psiquiatria Clínica”, um marco editorial dentro da psiquiatria nacional, criação de múltiplas unidades clínicas subespecializadas, realização de congressos nacionais e internacionais, acções de formação e estágios para médicos, enfermeiros, psicólogos, etc. Todas estas valências têm representado uma mais valia científica no campo da psiquiatria ultrapassando largamente a área de influência regional.

Finalmente, antes de responder à pergunta inicial, partilharia com o leitor este excerto de Platão, o filósofo grego, que há mais de dois mil anos disse: “O maior erro que se pode cometer no tratamento das doenças é haver médicos para o corpo e médicos para o espírito… Mas é precisamente o que acontece. Por isso, tantas doenças lhes escapam… Porque quando o todo se sente mal é impossível que uma parte deste todo esteja sã”. Na verdade, esta sabedoria vem de muito longe. Deixemos que os ventos do século XXI nos soprem a clarividência dos tempos modernos e nos levem para um Serviço de Psiquiatria integrante de um Hospital Geral que é também um Centro Universitário que se pretende de excelência.

Carlos Braz Saraiva