Seitas Religiosas

O que é uma seita religiosa?


Uma seita religiosa pressupõe a existência de uma doutrina, ou prática, que se afasta da religião dominante. Essa expressão tem usualmente um carácter pejorativo, na medida em que a maioria assim o determina como forma de a tentar menorizar ou mesmo ridicularizar. Também aqui a História é escrita pelos vencedores…Portanto, uma seita religiosa reproduz um movimento de dissidência que grassa dentro de uma religião já instalada na comunidade, por razões dogmáticas, litúrgicas ou de outros pormenores espúrios e pessoais, cujo exemplo comum é a sede de protagonismo de alguns dos seus pastores. Este último aspecto é tanto ou mais relevante porquanto rapidamente afloram perguntas sobre os desígnios desses movimentos. O que pretendem? O que os distingue de outros já existentes? Quem são as pessoas inquietas que os procuram? Outras questões de maior argúcia, seguramente de maior complexidade, interessarão a indivíduos mais despertos e cerebrais. Sobre a eventual ignorância e crendice subjacentes… Sobre a possível insanidade mental de alguns desses protagonistas ou a falta de escrúpulos, no fio da navalha da ilicitude, da imoralidade…


As novas Igrejas


As novas Igrejas surgiram em Portugal, mais profusa e abertamente à luz do dia, depois do 25 de Abril de 1974, ao sabor do vento da democracia e da liberdade. Trouxeram a alegria e a proximidade. Conseguiram transformar os ritos em espectáculos onde todos podiam ter um pouco mais de evasão pela possibilidade dos cânticos, dos gritos, dos contentamentos. E tudo isto é contagiante. Por um momento um pobre pode ser como um rico, sob o mesmo Deus, no mesmo Templo. Aí, pelo menos, permite-se o vazar de todas as mágoas. O toque entre as pessoas é intenso e isso é purificador. Os pretensos milagres irromperam pelas cerimónias. Assim também seria mais fácil uma qualquer oferenda no final, porque tida como consequência lógica de um benefício para a alma. O equivalente de uma profunda terapia. Mas, afinal, o que aconteceu nestas seitas religiosas emergentes? Talvez os mais desprotegidos, talvez os menos instruídos – não sei se os mais ingénuos – viram-se subitamente em contacto com pastores religiosos que falavam uma linguagem directa. Com metáforas simples e facilmente entendíveis. O amortecer do sofrimento passou a ser imediato. Tudo joga com o básico dos mecanismos das emoções, com factores neurobiológicos cerebrais que serenam no momento qualquer desesperado. E isto é uma grande sabedoria. Um “marketing” demolidor, de grandes proventos.


Quem são os crentes, os seguidores?


Muitos dos seguidores das seitas religiosas são pessoas carentes, desesperadas, em revolta contra as agruras da vida. Estão tristes e deprimidas. Nervosas e perturbadas. Sentem-se perdidas, à procura do Norte. De uma qualquer luz ao fundo do túnel. Não conseguem usar outras ferramentas psicológicas senão as de esperar que algo caia do Céu. Como se nada pudessem fazer para reverter o seu destino. Também por isso se inquietam por perguntas que as massacram, ao estilo: “Porque só me acontecem desgraças?”. E isto é muito latino. Mais próprio de países de tradição católica, menos dos de predomínio protestante, como acontece nos Países Escandinavos. Aqui, os crentes atribuem-se um maior protagonismo para os seus actos. Há uma cultura do trabalho e do mérito. Não se fala nem de sorte nem de azar.


É admissível que alguns desses seguidores encontrem conforto espiritual em certas fases da vida. Até porque acreditam cegamente nessa capacidade religiosa e em particular na intermediação do pastor. Já alguém disse: o mesmo poderia acontecer se tomassem um xarope de groselha ou um comprimido de farinha que acreditassem ter funções de cura…Mas aquela assunção é, aliás, imprescindível, inclusive para a sobrevivência da seita. O papel do pastor é sempre muito valorizado e qualquer iniciativa individual de contacto directo com Deus é tida como não abençoada e, portanto, inconsequente. Claro está que tudo isto perpetua o poder da seita. E se uns seguidores vão abandonando, por melhoria ou por descrença, outros vão surgindo. Alguns dirão que foram levados ao engano, outros que foi uma bênção. Uns irão reentrar no circuito médico. Mais uns quantos regressam aos curandeiros, cartomantes ou bruxas de onde vieram. E os demais frequentarão ao mesmo tempo todos estes “teatros” pois querem estar bem com Deus e o Diabo. E os pastores religiosos? Esses continuarão a sonhar com o efeito bola de neve, à espera que o Portugal de ditos brandos costumes os deixe em paz a receber todos os dízimos, mesmo os dos mais pobres. Porque o dinheiro é o sangue das Igrejas…


Como obter o dinheiro?


A manipulação visa um objectivo instrumental. Em troca do benefício terá que haver oferendas pecuniárias. A associação da dádiva a obrigação e dever, assim como acontece com o pagador de promessas, é uma poderosa mensagem intuitivamente compreendida pelos crentes. Talvez em África, em filmes sobre as Igrejas Evangélicas que têm passado em França e em Portugal, por exemplo, seja mais visível esta “máquina” de recolher dinheiro nas missas de centenas ou milhares de pessoas em estádios de futebol. Aqui, vários pastores não têm mãos a medir para abençoar e tocar na cabeça de tantos crentes que se amontoam e fervilham nas filas de aproximação ao altar na pressa de entregar o dinheiro metido em envelopes previamente distribuídos. E quanto maior a dádiva, maior a graça concedida! Dizem. Claro que todo este clímax é proporcionado por um ambiente de grande intensidade emocional, com desmaios em catadupa, estremeções dos corpos, vozes guturais, movimentos anómalos, posturas bizarras, logo transformados em “milagres” em série… Fenómenos que a ciência médica explica. Na verdade, o conhecimento profundo da psicologia das multidões é uma arma poderosíssima. Na mão de certos indivíduos pode ter consequências nefastas e perversas apesar de se pretender passar a ideia do benefício e da purificação. E, mais uma vez, os pobres, os frágeis, os debilitados, os inocentes, os ignorantes, os supersticiosos, são as grandes vítimas.


Os métodos mágico-sacramentais vão ao mais profundo das crenças, herdadas da tradição oral que remonta há séculos. Mexem com o cérebro primitivo “reptiliano” onde estão todos os medos, aquilo que é mais primário no Homo sapiens sapiens. Não tanto com o neocórtex frontal, onde reside já um refinamento crítico, racional e lógico. Precisamente por isso, toda a encenação que faz parte dos ritos é essencial para a persistência do valor das crenças. Tais abordagens deverão pressupor um condicionamento muito prático de parada-resposta. Sem quaisquer considerações teológicas muito elaboradas. Isso não importa nada. Ou seja, há sempre um objectivo, chamemos caminho, entre o bem e o mal. Sem meio-termo para que operacionalmente surja sempre a possibilidade de um processo catártico de alívio e consequente perdão do pecado. E se tudo isto ocorrer em público, então o contágio terá maior impacto e os resultados serão mais espectaculares. Mas com custos. Estamos naturalmente a falar de dinheiro. Muito dinheiro. E é esta a dádiva que purifica! Aliás, existem filmes de pastores que em privado confessaram tal determinação, mesmo com detalhes para as estratégias para levar a cabo a colheita de fundos perante hesitações ou relutância dos crentes.


O sagrado e o profano


O sagrado e o profano sempre estiveram interligados. A própria Igreja Católica inspirou-se no paganismo ou religiões orientais. Veja-se os pós Constantino, em Roma. As adaptações à nova religião a partir dos deuses pagãos…Mesmo o esconjuro e a oração têm semelhanças, como se constata nos exorcismos praticados pela Igreja Católica. Os exemplos são mais que muitos. A cidade celeste do Apocalipse estava protegida por 12 pedras preciosas, como amuletos protectores. Salomão possuía um anel com poderes sobrenaturais. Em certas regiões de Portugal, em reminiscências do passado pré-cristão, ainda se faz a bênção do gado nas procissões. Nas Beiras e em Trás-os-Montes, a massa do pão que leveda recebe a marca da cruz pela mão em cutelo da padeira, por vezes acompanhada de rezas ou ladainhas. As relações entre curandeiras e sacerdotes, por exemplo, são muito estreitas em determinadas regiões do Centro e do Norte. As romarias minhotas, como a de S. Bartolomeu do Mar em Esposende, estão embebidas do profano. O banho santo das crianças, o galo preto… Enquanto no Brasil, uma missa de manhã, um candomblé à tarde… Uma promessa para o Senhor do Bonfim num dia, uma prece a Iemanjá no dia seguinte no mar…


A Igreja Católica


Os primeiros cristãos foram considerados membros de uma seita religiosa e precisamente por isso perseguidos e mesmo martirizados. Mais tarde, a própria Igreja Católica debater-se-ia com clivagens profundas, como a heresia dos Cátaros, a Reforma e o Protestantismo, a Igreja de Libertação, as Igrejas Evangélicas de África, etc. Ou ainda o facto de ter que conviver com dois Papados: Roma e Avinhão (1309-1377). Avançando no tempo, recorde-se que até ao Concílio Vaticano II, nos anos 60 do Século XX, o sacerdote da Igreja Católica estava de costas para os crentes e rezava missa em latim, uma língua morta, o que afastava as pessoas de um ambiente de calor humano. Isto para já não falar de homens e mulheres assistirem à missa separados, como se via principalmente nos meios rurais. Estas realidades alimentavam a ideia de um Deus distante numa Igreja que vinha a “engordar” e a distanciar-se das pessoas. Onde os ecos do anticlericalismo do final da Monarquia e da I República persistiam. Tarde demais a Igreja Católica começou a perceber que os jovens estavam a encarar a liturgia como sorumbática, o seu Deus como castigador, e o espectro do pecado a pairar sobre o quotidiano. Mesmo para coisas pueris, que viriam a ser inocentadas mais tarde. Veja-se, por exemplo, o pavor de não se ter confessado todos os pecados antes da comunhão ou a torturante dúvida sobre se a hóstia havia sido trincada ou não…Ou o pecado das relações pré-conjugais, quão desfasada a Igreja Católica estava da realidade! Ou aquelas questões aterrorizadoras da catequese da divisão entre Céu e Inferno. Desse estadio intermédio difícil de explicar de Purgatório. Ou um outro ainda mais esdrúxulo: o Limbo para as crianças! Aquele “local” para onde iam as almas das criancinhas não baptizadas, porque ao céu não tinham logo direito… Entretanto revogado pelo Papa Bento XVI. E tudo isto relacionado com um Deus que deveria ser infinitamente misericordioso, um Deus de Amor. Não espanta, pois, que alguns jovens se tenham aproximado da espiritualidade do budismo. Passaram a ler o Dalai Lama,Thich Nhat Hanh, entre outros, à procura da paz interior e de uma qualquer forma de felicidade. Portanto, não surpreende que a maioria daquelas seitas tenha brotado na América Latina, em países de influência ibérica, com a personalidade e a vulnerabilidade desses povos: mais esfusiantes, simples, supersticiosos, ligados às coisas da sorte e do destino, ainda muito impregnados das religiões primitivas animistas… Aqui a concepção de Deus é telúrica, pouco especulativa. As perguntas reflexivas não são bem-vindas porque a verdade é aquela, só uma e não pode ser outra. Rapidamente isto é interiorizado. Um potencial dissidente pode ser desestabilizador. Qualquer pessoa mais curiosa ou dubitativa afasta-se ou é excluída.


O que fazem as autoridades?


Algumas pessoas poderão pensar o porquê da impunidade de pastores que prometendo o que não podem dar – os bens celestes – se banqueteiam com os bens terrestres, ou seja, o dinheiro dos seus seguidores. Ou se não estamos perante “lavagens ao cérebro” sobre pessoas sofridas e profundamente fragilizadas? É compreensível que do ponto de vista do Direito existam pontos polémicos acerca do enquadramento legal das actividades destas seitas. Mas também é verdade que só excepcionalmente o poder político intervém, como aconteceu no Japão com a seita de Shoko Asahara, na década de 90 do Século XX. Todavia, foi preciso um ataque com gás sarin no Metro de Tóquio para se entender que o pastor fora longe demais. Alguém disse que a escalada do terror e uma hipotética luta pelo poder foram determinantes para o governo nipónico pôr cobro ao desvario.


Suicídios colectivos


A loucura pode levar mesmo a suicídios colectivos. No Século XX os mais importantes foram protagonizados pelas seitas de Jim Jones (1978), David Koresch (1983) e Luc Jouret (1994). Frequentemente o que desperta tal fim é a sensação de ameaça, por vezes interpretada como um cerco realizado pelas autoridades. A megalomania, a paranóia e a psicopatia, ou perversão anti-social, são as doenças mentais, quando existem, mais comuns deste tipo de pastores religiosos. Na megalomania acredita-se num projecto grandioso, universal, sem limites. Sem que haja qualquer ponderação ou razoabilidade. E, por mais absurdo ou faraónico que certos desejos aparentem, eles são implementados pela força desse estadio doentio, aos olhos de outrem, não do próprio, que até pode acreditar em tudo o que faz. Na paranóia estamos perante uma grave doença da realidade, uma psicose que afecta o conteúdo do pensamento em que a mania da perseguição preenche todas as actividades do dia-a-dia. O fanatismo aqui não admite vozes discordantes e a sua mensagem é tida por absolutamente verdadeira e única. Os outros, os que não pensam da mesma maneira, são muitas vezes tidos como párias, inimigos a abater. Por outro lado vão estimulando as razões de sobrevivência da própria seita, que assim tem mais um motivo para persistir na luta. Na psicopatia surge a irresponsabilidade total, sem respeito por normas sociais. Em clima de grande impulsividade constroem, à margem de quaisquer direitos individuais, uma seita. A fidelidade ou a lealdade só pode ser vista dentro do grupo para com o pastor. Outros direitos ou aspectos relacionados com a dignidade dos crentes não são tidos nem achados. Todavia, é sempre possível que algumas destas situações irrompam cumulativamente. E quando há “problemas” só mais tarde é que se conjectura sobre o que se podia ter feito preventivamente em relação a tais líderes espirituais. Naqueles suicídios colectivos citados morreram ao todo cerca de 1000 pessoas, 900 das quais eram seguidoras do californiano Jim Jones. Aqui até as mães deram refresco de cianeto aos filhos…