A Consulta de Prevenção do Suicídio dos Hospitais da Universidade de Coimbra – uma sinopse

Do ponto de vista clássico, sempre num perigoso exercício de síntese, há uma tríade relevante em suicidologia quanto à eventualidade de um determinado acto levar à morte: letalidade, exequibilidade e intencionalidade. Se os dois primeiros constructos parecem mais evidentes, diríamos menos filosóficos, em função da escolha do método suicida e da facilidade de o levar a cabo, o terceiro ancora nas profundezas da mente. Da vontade. Da consciência. Da luta interna, titânica, avassaladora.

Da outra face da “moeda” do suicídio encontramos o parassuicídio. Ou seja, um comportamento que, desfocadamente, se tem designado tentativa de suicídio.

O parassuicídio é um acto de consequências não fatais, no qual o indivíduo inicia deliberadamente um comportamento que lhe causará dano ou lesão, ou ingere uma substância em excesso face à dose prescrita ou geralmente reconhecida como farmacologicamente activa e que visa a obtenção de mudanças através das consequências físicas reais ou esperadas.

Um comportamento que parece ser uma linguagem de desamparo ou revolta através do corpo. Uma forma inadequada de esbater a tensão emocional, na ausência de outras ferramentas psicológicas para lidar com conflitos, perdas, fracassos. Em que, supostamente, a intenção suicida é inexistente, persistindo uma margem “cinzenta”, mínima que seja, relacionada com um dos aspectos mais complexos da suicidologia: a ambivalência.

Tal visão da ambivalência cognitiva decorre frequentemente das narrativas de suicidas frustrados que conseguem transmitir mais tarde o que sentiram imediatamente antes do seu gesto. Excluir-se-ão, provavelmente, os casos raros de não impulsividade no gesto, se é que tal existe, perante um método suicida dito violento, sem possibilidade de retorno e com um esquema mental de um não hibernar ou de um não desligar. E também aquelas situações em que não se deixou grande margem de manobra ao destino para ser o árbitro do que vai acontecer. Viver ou morrer. Isto é, com maior inoculação da internalidade em detrimento da externalidade do locus de controlo (Saraiva, 1997; 1999; 2006; 2010).

Mas foi precisamente a partir da dimensão dos números do parassuicídio, bem retratada nos estudos epidemiológicos da Consulta de Prevenção do Suicídio, pioneiros em Portugal, isto é, 200 casos anuais por 100.000 habitantes, ou 600 casos anuais por 100.000 habitantes (Saraiva et al., 1996), se nos restringirmos apenas às mulheres dos 15 aos 24 anos, que em 1992 iniciámos esta consulta diferenciada nos Hospitais da Universidade de Coimbra.

Inspirados na Escola de Oxford de Keith Hawton, também tirando partido de estágio por nós efectuado em Londres, em 1992, no Parasuicide Department do  King´s College Hospital, sendo director ao tempo Duncan McLean (um investigador que se destacaria ulteriormente pelos trabalhos na teoria da Mentalisation de Bateman-Fonagy), o objectivo prioritário é intervir sobre a chamada “crise suicidária”. Na maior parte dos casos esbate-se ao fim de um mês, o que não impede, todavia, recorrências futuras.

Entre 1994 e 1996 o grupo teve oportunidade de frequentar acções de formação, em Coimbra, de diversos colegas com experiência na área da personalidade e da suicidologia, entre eles, Anthony Mann, Daniel Sampaio e Duncan McLean. O ano de 1996 marca o início da nossa participação internacional, com trabalhos da equipa, em Cambridge, Madrid e Budapeste. Também é o ano das 1as Jornadas sobre Comportamentos Suicidários (Pousada de Santa Cristina, Condeixa-a-Nova), que entretanto chegaram às 8as Jornadas em 2010 (Luso), eventos sempre muito participados, com um recorde impressionante de 820 congressistas na 5ª Edição, em 2004.

A Consulta de Prevenção do Suicídio dos Hospitais da Universidade de Coimbra tem uma dupla vertente: assistencial e investigação. Membros actuais (Dezembro de 2010): Carlos Braz Saraiva, Francisco Alte da Veiga, Adelaide Craveiro, José Carlos Santos, Nuno Madeira, Paula Garrido. Milhares de consultas, múltiplos trabalhos de investigação, um prémio num congresso mundial de suicidologia da International Association for Suicide Prevention (IASP), na Índia, em 2001, oficinas de formação, colaborações em obras de suicidologia, em “sites”, na comunicação social, palestras em escolas, participação activa na Sociedade Portuguesa de Suicidologia, para além da já citada organização das “Jornadas sobre Comportamentos Suicidários”, atestam a vitalidade do grupo.

Em relação à casuística, verificámos que cerca de 20% dos doentes já tinham cometido três ou mais parassuicídios antes da primeira consulta na Consulta de Prevenção do Suicídio. A quase totalidade dos doentes é oriunda do Serviço de Urgência. O principal instrumento de trabalho usado na Consulta de Prevenção do Suicídio é a EACOS, Entrevista de Avaliação de Comportamentos Suicidários, composta por 77 questões. Apresenta dimensões quantitativas e aspectos qualitativos. A valorização das narrativas é essencial ao compreender e explicar. A entrevista permite ainda indicadores sociométricos da família e amigos (Saraiva, 1998).

Apesar de um sempre possível ecletismo na intervenção terapêutica, é mais comum a abordagem cognitivo-comportamental e interpessoal. Nalguns casos foi indicado psicodrama. Até 2010 foram vistos mais de mil doentes, dos quais cerca de 50% são jovens (15-24 anos). Devido aos aspectos intrínsecos conceptuais sobre o que é o parassuicídio e à melhor homogeneidade da amostra, optamos aqui por mostrar apenas um brevíssimo retrato dos cerca de 500 jovens parassuicidas observados:
  • 19 Anos – Média de idades
  • 80% – Sexo feminino; classes baixas; discussão no plano dos afectos; reprovações
  • 70% – Intoxicação medicamentosa
  • 60% – Mau relacionamento familiar; doença psiquiátrica de familiar
  • 50% – Fumadores excessivos
  • 40% – Suicídio ou tentativa de suicídio na família; pedem ajuda depois do acto
  • 30% – Maus tratos na infância; sem actividades de grupo ou confidente; deixam carta
  • 20% – Vítimas de abuso sexual; abusadores de álcool; sem práticas religiosas
  • 10% – Intoxicação por pesticidas; auto-mutiladores; internamentos prévios em psiquiatria; educados em instituição
Propusémos uma tripla patologia para a generalidade deste tipo de doentes, mormente os recorrentes: do sentir, do tempo e do poder. Ou seja, sentem tudo muito excessivamente; lidam mal com o tempo, porque são impacientes e intolerantes; e a nível das relações de poder ficam desconfortáveis quando menorizados ou marginalizados, por exemplo, dentro da família (Saraiva, 1997; 1999).
Em relação às designadas auto-mutilações, conceptualizamos quatro grandes categorias, sendo a terceira a mais comum em psiquiatria (Saraiva, 2006, p.46):
  • Iniciáticas (identificação com o grupo; ex: “piercings”)
  • Religiosas (purificação; ex: crucificação)
  • Compulsivas (impulsivas; ex: corte superficial do pulso)
  • Psicóticas (expiação; ex: corte do pénis)

Do ponto de vista diagnóstico é frequente nos parassuicidas recorrentes a seguinte comorbilidade:

  • Depressão ou perturbação de adaptação (reacção de ajustamento)
  • Perturbação da personalidade (“cluster” B> C> A), borderline, histriónica, dependente…
  • Consumo de substâncias psico-activas (álcool, drogas)
  • Perturbação do controlo do impulso (impulsivos-explosivos)
Do nosso trabalho empírico clínico resultante da observação de milhares de casos com estas patologias, desde a década de 80, consideramos que o parassuicídio decorre da conjunção stress-vulnerabilidades (neurobiológicas, neurofisiológicas, psicológicas, culturais) onde o reemergir de memórias traumáticas de infância ou adolescência ocupa papel de relevo. Depende ainda da personalidade e sua estrutura cognitiva, de múltiplos factores do meio ambiente, quer protectores quer de risco. O parassuicídio é um comportamento-doença subjacente a uma patologia dos afectos, ajustamentos, personalidade, interacção social e familiar (Saraiva, 1997; 1999; 2006).

Entre os aspectos mais chocantes das entrevistas contam-se as referências a maus tratos (físicos, psicológicos, sexuais) e histórias de vida interpretadas como de rejeição continuada ao longo dos anos. Afinal, pessoas que, dizem, nunca se sentiram verdadeiramente amadas. Foi isso que nos permitiu propor o conceito de “rejeição sentencial familiar” (RESF), como uma marca indelével que emergiria ocasionalmente perante circunstâncias adversas ou ameaçadoras (Saraiva, 1997; 1999; 2006). Tais achados também nos reacenderiam o pensamento crítico e o compromisso para com a cidadania. De facto, perante tantos jovens-problema que convivem com tantas famílias-problema, há uma pergunta obrigatória: “O que estamos a fazer pelas crianças do nosso país?”.

REFERÊNCIAS

Saraiva, C. B., Alte da Veiga et al. Epidemiologia do para-suicídio em Coimbra – Psiquiatria Clínica, 17 (4), 291-296, 1996.
Saraiva, C. B. (1997) – Para-Suicídio – Contributo para uma compreensão clínica dos comportamentos suicidários recorrentes. Dissertação de Doutoramento em Psiquiatria. Faculdade de Medicina de Coimbra.
Saraiva, C. B. (1998) – Entrevista de Avaliação dos Comportamentos Suicidários (EACOS), Psiquiatria Clínica, 19 (4), 251-274.
Saraiva, C. B. (1999) – Para-Suicídio. Coimbra: Quarteto.
Saraiva, C. B. (2006) – Estudos sobre o Para-Suicídio – O que leva os jovens a espreitar a morte. Coimbra: E.A.
Saraiva, C. B. (2010) – In Prefácio ao livro “Suicídio nas prisões” de N. C. Moreira (2010). Porto: Legis .