O homem pós-moderno e a perda da espiritualidade

O Dalai Lama, o líder espiritual do budismo tibetano, visitou Portugal pela primeira vez em 2001. Durante uma sessão pública, um jovem assombrado pelo fantasma da inquietação interpelou-o sobre qual o caminho a seguir para não se suicidar, tal era o seu sofrimento. A resposta foi de uma surpreendente limpidez: “Comece a dar!”

Tal singelíssima orientação, explícita e sintética, vai ao encontro do cerne da teia em que se debate o homem pós-moderno: o triunfo do egoísmo. As sereias que perversamente nos encantam levam-nos ao endeusamento do prazer imediato, à perpetuação do ideal ilusório do sempre belo e ao espelho que fala tão só aquilo que queremos ouvir: “Be number one”. Aí está, mais do que a crença, o pregão que reiteradamente ecoa por todo o lado: “Dos números 2 e dos outros abaixo na lista ninguém falará; a História é escrita pelos vencedores”.

Esta relação doentia do Eu-Eu interfere seriamente no Eu-Tu e no Eu-Isso. A tempestade afigura-se perfeita porque a sociedade contemporânea alimenta o exacerbar de um perigoso narcisismo, em que o homem não consegue libertar-se da armadilha de um maligno individualismo. Não surpreenderá que, aproveitando esta onda gigante, se imponham as poderosas ditas leis do mercado, do consumo e do espetáculo: “Tens que ter pelo ter; se não apareces, não existes”. E sempre, mesmo sempre, na penumbra ou despudoradamente escancarado lá está o “Deus Dinheiro!”

Então, o que temos hoje? Tudo é efémero, tudo é descartável. Também tudo é dicotómico: ou preto ou branco. Ou 8 ou 80. Deixou de haver equilíbrios ou concórdias. A pressa apressada e o tempo voraz devoram tolerâncias e paciências. O frenesim da competitividade, custe o que custar, projeta-nos o horizonte mais curto, uma cegueira.

Portanto, o culto de um Eu egocêntrico e hedonista, fora da solidariedade coletiva, não permite o “descentrar-se” com vista à partilha e à troca. Poderia ser um slogan de cartaz: “É urgente sair do espelho”; ir para a rua e deixar-se prender pelo gargalhar descomedido de uma criança ou atentar no velho que serena e compassadamente passeia o seu cão. A vida é feita também destas simples interações.

O sábio conselho do “comece a dar”, proferido pelo Dalai Lama, obedece precisamente ao estímulo necessário à mudança interior. Quando a pessoa “dá”, ela apercebe-se que para além de um Eu há também um Outro. Deste fluxo afetivo, deste “encontro”, muito mais do que uma mera relação, recria-se a plateia social que a contempla e usualmente a dissuade passar a um ato de desespero.

Muitos daqueles náufragos estão carentes de uma qualquer bóia. Não apenas o budismo nos ensina que a procura da sabedoria e o exercício da compaixão terão que estar forçosamente no caminho da felicidade. Utopia ou não, deveremos porfiar. E isso será muitíssimo reconfortante para todos nós.

Carlos Braz Saraiva