Gracinha

Inverno de 2005. Ali vinha ela novamente. Esfusiante, mexida, faladora, resplandecente de ideias. De grandes brincos, a baloiçar, coloridos, desses de artista de rua. Uma saia maxi avermelhada aumentava a graciosidade. Ela própria se divertia, rindo, ao rodar o corpo de menina. Diriam fantasiosa de mais, fora de temperanças, as muitas compras, os excessos, as meias loucuras… Mas o atrevimento era a sofreguidão do viver intensamente. Até aquele forte abraço de chegada e partida!


Agora as nódoas negras das pernas pareciam estar a aumentar desde o Verão. Assim mostrou de repente e logo rodopiou num passe de bailado. E tanto que há para fazer, mesmo não indo à Escola! Em breve, umas termas no Algarve, depois, tirar a carta de condução, mais à frente, no futuro, Arquitectura… E a gata? Sim, que fazer à pobre bichinha doente da pele? Os seus olhos paravam nos meus. Prolongadamente. À espreita do não dito. A testar qualquer embaraço ou imprecisão. Que só da lealdade esperava alguma coisa, cansada de meias verdades e de médicos inquietos, ainda que com apertos de peito e nós de almas.


Será que desta vez vamos falar de plaquetas, cortisona, psicofármacos ou tão só das coisas boas da vida? Ou voltou a preocupação pelo peso e pelos edemas da face e dos membros? Mas agora a sina parecia outra. Deixemo-nos navegar conforme ao vento que sopra. Certamente ganhei a sua confiança. E aí vamos os dois no veleiro. Pelo Sol, pela Lua ou pelas Estrelas do Céu. Logo percebi que o olhar fundo e o seu cintilar revelava uma grandiosa espiritualidade. Mesmo quando falámos da morte de um amigo muito querido. Eu estava perante alguém que queria abarcar todos os sentidos, todos os mares. Do muito querer, mais do que o saber, também o habitar de mundos sonhados.


Soube que piorou. A doença teimava. E tinha nome, que mesmo citado não fugia: síndrome mielodisplásico. Mais de dois anos haviam passado e a esperança de um transplante de medula compatível estava para lá do horizonte. Já não Coimbra, Lisboa, Salamanca… Talvez além, talvez não, Europa, quiçá nos Estados Unidos. Finalmente até poderiam chegar boas notícias da Suíça. Sim, porque daqueles mais de 30 possíveis dadores, já só restava um. O tal. O único. A tortura da dúvida assomava a querer suplantar a esperança. Mas diz-se que esta é a última a definhar. E para onde vai a raiva? Qual o canal certo, se é que há certezas para estas coisas?


Novos internamentos, transfusões, ajustes terapêuticos, infecções intercorrentes, febre… Que estoicismo perante a adversidade! Será que a vida estava a andar demasiado veloz? E o que sentirão os pais? E o que pensam os amigos que tão arredios parecem? Mas agora lá estava o corpo zangado, disforme, pelas maleitas e pelos efeitos secundários dos remédios. E sempre a mesma expressividade! Até que depois já não conseguia caminhar. Vieram as terríveis dores na coluna. E logo surgiu a cadeira de rodas. Como um instrumento, uma ferramenta. Talvez fosse útil para buscar tintas e pincéis…


Inverno de 2006. Nesse dia, lá em casa, passei por outras salas. Desenhos, pinturas, colagens…Tudo espalhado. Até um trabalho sobre o fundo do mar! E as cores quentes de uma jovem tão alegre… Soube que a rebeldia e a insónia eram amansadas pelos ansiolíticos escondidos pela casa. A exigência de uma medicação para perder peso estava a sucumbir. E desta vez, estranhamente, não se levantou quando entrei. E foi quando lhe disse… Soprei-lhe o frenesim. Despertei-lhe a criatividade. E ela percebeu que a imortalidade também estava na sua arte!

In Memoriam de G. C. que aos 20 anos, em 2007, viajou para lá do horizonte, no mar alto, num sopro de vento…