A fita violeta

Lá estava ela, de café na mão, ao cimo da escada, para a saudação matinal. Mesmo que da máquina fosse, a bica era sempre esperada. “A senhora tem uma moeda?”

Ao fim de dezenas de anos na Clínica Psiquiátrica parecia ainda desperta. Como que a brindar aos passantes. Não se sabe bem porquê, se do afecto das gentes, se dos novos remédios para estas coisas da ideia, mas nos últimos anos rejuvenescera. Pela graciosidade do arranjo, pelas falas mais atrevidas. Até se pintava, de quando além, com a ajuda de mão carinhosa, mesmo uns laçarotes, umas trancinhas no cabelo…

Mas também dela se evocavam as grandes agitações, longínquas no tempo, nos primórdios das fenotiazinas. Os choques eléctricos, as fúrias catatónicas, os alaridos… Mas agora só doçura exibia. Eis a nossa menina!

Para além do alheamento e da deambulação pela Enfermaria, quando não pela afoiteza desconcertante das caminhadas na via pública, que nos punha o “coração num cesto”, como se diz na Beira, era bem capaz de nos surpreender. Umas vezes repetia-nos as frases, noutras só a última palavra ecoava. Do tempo e do Papa, eram temas preferidos. Ao estilo, “vai chover”, “vem aí o Papa”…

Contudo, havia alturas de preocupações com demais aspectos clínicos.

- Candinha, deixe ver essas manchas! A perna não está lá muito católica! Disse a médica, intrigada.

- Está protestante! Respondeu a menina.

Toda a gente achou notável a comparação e não foi possível conter o riso. A própria doente parecia querer partilhar esse momento divertido. Porém, logo voltava para o seu mundo de interiores, ensimesmado, episodicamente interrompido por pequenas tarefas ou recados.

Quando especada ao centro da porta da Clínica parecia guardiã de um castelo.

Se via uma criança a entrar, acompanhada da família, dizia num meio sorriso maroto:

- O bichinho é tão giro!

- Ó Candinha, não é um bichinho, é um bebé! E sabe como se chama? Quase ralhou o enfermeiro.

- É Boyboy! Rematou a doente, para espanto de todos.

O apelo da rua era sempre muito forte. Às vezes chegava mesmo a pedir boleias a estranhos para ir passear. Mas naquele dia alguém a alertara para o momento muito especial na Clínica. Disso certamente desconfiou quando foi primorosamente abonecada, muito arranjadinha. Parecia uma catraia das que vai para uma festa. Não, desta vez nem baile nem magusto, que o tempo das castanhas ainda não chegara. Também ninguém fazia anos, pelo que não teria que cantarolar nada. Era sim a exposição de pintura na Enfermaria da Daniela, a jovem minhota internada com uma doença depressiva. Aquela rapariga das cores quentes, que até pintara à impressionista pontes de Paris e vermelhões do pôr-do-sol. A rapariga que ousara embrenhar-se nos óleos e colagens de um palhaço para oferecer a um menino muitíssimo querido…

Estavam já os quadros alinhados no salão quando a Candinha se aproximou, sorrateira, daquele quadro intensamente colorido de uma paisagem campestre a perder de vista e um arco-íris estilizado. Quase colou os olhos à pintura, curiosa, depois afastou-se um pouco. Meia voltada, meia absorta, deixou escapar, de modo que a Daniela ainda conseguiu ouvir:

- Mas onde está o violeta?!…

- Aqui, Candinha! Respondeu a Daniela. E logo, solícita, a doente pintora, sua camarada, retirou do quadro a última fina camada daquele arco e, calorosa, acariciou os longos cabelos da companheira. Por magia ou milagre, quem sabe, uma fita violeta prendia-lhe agora a franjinha da Cândida, como nos tempos de bailarina aos seus 12 anos…

In Memoriam

Um conto de homenagem a Dª Maria Cândida Barbosa (Candinha), doente internada na Clínica Psiquiátrica dos Hospitais da Universidade de Coimbra durante mais de 40 anos, falecida em 2007.